Psicologia das Cores: Quando o Inconsciente Pinta o Mundo
- Deivede Eder Ferreira

- 16 de out.
- 9 min de leitura

O olhar é o primeiro espelho da alma — e a cor, sua primeira confissão. Antes que a fala se forme, o inconsciente já desenha significados no espaço.
Para compreender essa linguagem silenciosa que habita o olhar, é preciso mergulhar nas profundezas do simbólico. Descubra o Curso de Formação em Psicanálise da ABRAFP e veja como a mente humana se revela até nas tonalidades do invisível.
I. Introdução – Quando a cor antecede a palavra
Há algo de profundamente humano no instante em que o olhar reconhece uma cor. A criança, ainda sem nomear o mundo, distingue o vermelho do perigo e o azul da calma; o preto do sono e o branco do colo. O corpo compreende antes da razão. E talvez por isso, a cor não seja apenas um fenômeno óptico — mas um acontecimento psíquico.
A psicologia das cores nasce dessa intuição: de que há na cor um modo de dizer o indizível. Ela não se limita à estética nem à moda; é uma tentativa de traduzir a emoção que o olho pressente, mas o pensamento ainda não sabe formular. Quando escolhemos uma cor, escolhemos inconscientemente um modo de estar no mundo — uma vibração emocional que nos representa e nos revela.
O vermelho é a urgência de existir. O azul, o desejo de respirar. O preto, a coragem de mergulhar no silêncio. A cor é o que o inconsciente diz quando o ego silencia.
II. A origem da psicologia das cores – da luz à alma
A história da cor é, na verdade, a história do olhar humano.
De Aristóteles a Newton: o corpo da luz
Aristóteles, em De Sensu et Sensibilibus, acreditava que as cores nasciam da mistura entre luz e sombra. Para ele, o branco era o limite da claridade, e o preto, o limite da escuridão — extremos que continham, entre si, todos os matizes da vida. Essa visão simbólica ecoaria séculos depois na própria psicanálise: luz e sombra como metáforas do consciente e do inconsciente.
Em 1704, Isaac Newton publicou o Opticks, demonstrando que a luz branca se decompõe em sete cores. Ele separou o mito do fenômeno, mas, ao fazê-lo, inaugurou outro mistério: por que sentimos cada cor de modo tão diferente, se fisicamente são apenas comprimentos de onda?
Goethe e a revolução da alma colorida
Em 1810, o poeta e cientista Johann Wolfgang von Goethe publicou sua monumental Doutrina das Cores (Zur Farbenlehre), em oposição direta a Newton. Para Goethe, a cor não era um dado físico, mas uma experiência da alma. “O olho participa da criação da cor”, escreveu ele — e com isso, antecipou a psicologia moderna.
Goethe percebeu que o vermelho aquece, o azul distancia, o amarelo anima e o verde pacifica. Ele via a cor como emoção visível, e cada matiz como uma qualidade da consciência. O mundo não apenas é colorido — ele se torna cor quando alguém o sente.
Kandinsky: o som interior das cores
Um século depois, o pintor e teórico Wassily Kandinsky retomou Goethe, levando-o às últimas consequências. Em Do Espiritual na Arte (1911), afirmou que cada cor possui uma ressonância interior — um som invisível que vibra dentro da alma humana. O azul profundo o fazia ouvir o som do órgão; o amarelo intenso, o trompete. A cor, dizia ele, é “a tecla; o olho, o martelo; a alma, o piano”.
Em Kandinsky, a cor torna-se linguagem do invisível. E o artista, como o psicanalista, é aquele que escuta o que as cores dizem quando o mundo silencia.
A era moderna e o olhar científico
No século XX, estudiosos como Faber Birren e Angela Wright sistematizaram a chamada psicologia aplicada das cores. Birren demonstrou os efeitos fisiológicos e comportamentais das tonalidades: o vermelho aumenta a pressão arterial, o azul reduz a ansiedade, o verde estabiliza o ritmo cardíaco. Wright, por sua vez, criou um modelo que unia biologia, psicologia e design, mostrando que a cor influencia a cognição, o apetite, o foco e a empatia.
Mas é na psicanálise — e não na estatística — que a cor volta a ser símbolo: espelho do que o ser humano sente ao ver o mundo.
III. A cor na psicologia contemporânea
A ciência moderna confirmou que a cor é um estímulo que altera estados mentais e fisiológicos. O vermelho estimula o sistema simpático — prepara para a ação, acelera o batimento cardíaco. O azul aciona o parassimpático — desacelera, convida à reflexão. Mas o dado mais intrigante é este: a cor afeta o corpo antes de afetar o pensamento.
Isso significa que, no instante em que vemos uma cor, já sentimos algo — mesmo sem saber por quê. E é nesse intervalo, entre o sentir e o saber, que o inconsciente age.
A cor, portanto, é o ato falho do olhar: diz o que a consciência ainda ignora.
IV. Freud: a cor como retorno do recalcado
Freud não analisou paletas, mas entendeu algo que toda cor contém: o desejo disfarçado.
O inconsciente, escreveu ele, “não conhece negação, apenas substituição”. Assim, o que é reprimido retorna transformado — e às vezes, retorna em cor.
A escolha de uma cor preferida, o ambiente que alguém cria à sua volta, o tom da roupa que repete sem perceber: tudo isso pode ser expressão simbólica do recalcado. O preto pode ser o abrigo de uma dor contida; o vermelho, o eco de um prazer negado; o branco, o desejo inconsciente de pureza após o erro.
Freud veria na cor uma linguagem condensada: o afeto travestido de forma.
“O sintoma é um substituto de algo que não pôde ser vivido.” — Sigmund Freud, 1917.
Nesse sentido, a cor é um sintoma estético — o corpo tentando organizar o caos do desejo.
V. Jung: o arco-íris da individuação
Para Carl Gustav Jung, as cores são expressões do inconsciente coletivo. Ele encontrou nas tradições alquímicas um paralelo entre o processo de individuação e as quatro cores simbólicas da transformação interior:
Etapa Alquímica | Cor | Significado Psíquico |
Nigredo | Preto | Morte simbólica do ego, mergulho na sombra. |
Albedo | Branco | Purificação, claridade e nova consciência. |
Citrinitas | Amarelo | Iluminação interior, surgimento do discernimento. |
Rubedo | Vermelho | Integração dos opostos, plenitude do Self. |
Essas cores não são metáforas — são energias da alma. O preto é o silêncio que antecede o nascimento. O branco, o suspiro que o sucede. O amarelo, a luz que desperta a consciência. E o vermelho, o sangue simbólico da completude.
A cor, para Jung, é um rito de passagem psíquico. Viver é atravessar todas — até que o eu aprenda a ser arco-íris.
VI. Lacan: a cor que nos olha
Lacan transformou o olhar em conceito. Ele dizia: “O olhar está do lado do objeto, não do sujeito.” Em outras palavras: não somos nós que olhamos a cor — é a cor que nos olha.
O preto, nesse sentido, é o ponto cego do desejo: o lugar onde a visão se confronta com o impossível de ver. O vermelho é o objeto a, a presença que captura o olhar. O azul é o espaço do ideal, a distância que o sujeito cria entre o que é e o que gostaria de ser.
A cor é o lugar onde o real toca o simbólico. E diante dela, o sujeito se vê sendo visto — e, por um instante, reconhece o próprio vazio.
🎨 VII. As cores e seus espelhos simbólicos
Cada cor é um espelho — e todo espelho reflete uma ausência.
⚫ Preto
Cor do recolhimento, da profundidade e da estrutura. É o útero simbólico onde a consciência se refaz. Quem ama o preto busca intensidade sem exposição, presença sem ruído. É a cor dos que pensam antes de falar e sentem antes de se mostrar.
⚪ Branco
Cor da purificação e do recomeço. Mas também do esquecimento: o branco absoluto pode ser o desejo de apagar o passado. É o símbolo da consciência idealizada, o oposto e o complemento do preto.
🔴 Vermelho
A cor do corpo, da libido, da vida que insiste. Em sua luz há prazer; em seu excesso, violência. O vermelho é o Eros em estado cru — a lembrança de que estamos vivos.
🔵 Azul
A cor da alma que deseja compreender-se. O azul afasta e acalma, eleva e esfria. É a cor dos que sonham alto, mas às vezes vivem longe de si. É o espelho do ideal e o véu da emoção contida.
🟢 Verde
Entre o vermelho e o azul, o verde é reconciliação. Representa equilíbrio, vínculo e respiro. Quem busca o verde quer pertencer sem perder-se.
🟡 Amarelo
É a luz do discernimento e a febre da mente. Em equilíbrio, é o sol interior da consciência; em excesso, é a ansiedade travestida de lucidez. O amarelo é a cor de quem pensa demais porque sente demais.
VIII. A cor e o inconsciente coletivo moderno
Vivemos imersos num oceano cromático projetado para provocar emoção. O azul do Facebook sugere confiança. O vermelho da Netflix, presença e vício. O preto da Apple, poder e introspecção. O marketing moderno, sem saber, tornou-se uma psicanálise aplicada ao consumo.
Mas a cor, quando usada para manipular, perde seu caráter simbólico e torna-se apenas estímulo. É preciso resgatar a dimensão poética do ver, onde a cor volta a ser experiência interior — não ferramenta de persuasão.
Ver é sentir. E sentir é uma forma de pensar.
IX. O arco-íris interior – a individuação cromática
Cada ser humano é feito de cores que nem sempre se mostram. Somos, ao mesmo tempo, pretos e brancos, vermelhos e azuis. O amadurecimento psíquico consiste em reconciliar as tonalidades internas, integrar sombra e luz.
“Tornar-se inteiro é aceitar todas as cores que o inconsciente projeta.” — Carl Jung.
A verdadeira psicologia das cores não está nas paredes nem nas roupas — mas no modo como o olhar responde ao mundo. Quem aprende a escutar suas cores aprende, enfim, a escutar-se.
Conclusão – O olhar que pinta o mundo
A cor é o verbo do inconsciente. É o modo como o silêncio se torna visível, e o invisível, suportável.
Ao estudar a psicologia das cores, descobrimos não apenas como percebemos o mundo, mas como o mundo nos percebe. Cada tonalidade é uma tradução emocional do que somos e do que buscamos ser.
E talvez por isso, entre todas as linguagens da alma, a cor seja a mais honesta: não mente, não disfarça, não promete. Apenas mostra.
Se você deseja compreender a mente humana em sua profundidade simbólica — e aprender a ler o inconsciente em todas as suas formas —, conheça o Curso de Formação em Psicanálise da ABRAFP.
Porque compreender o homem é, antes de tudo, aprender a ver as cores que ele é.
Bibliografia: Fontes clássicas e históricas
ARISTÓTELES. De Sensu et Sensibilibus. Trad. G. R. T. Ross. Oxford: Clarendon Press, 1906.
NEWTON, Isaac. Opticks: Or, A Treatise of the Reflections, Refractions, Inflections and Colours of Light. London: Royal Society, 1704.
GOETHE, Johann Wolfgang von. Zur Farbenlehre [Doutrina das Cores]. Tübingen: Cotta, 1810. (Trad. portuguesa: Doutrina das Cores. São Paulo: Martins Fontes, 1993.)
KANDINSKY, Wassily. Über das Geistige in der Kunst [Do Espiritual na Arte]. Munique: Piper Verlag, 1911. (Trad. brasileira: Do Espiritual na Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996.)
BIRREN, Faber. Color Psychology and Color Therapy: A Factual Study of the Influence of Color on Human Life. New York: McGraw-Hill, 1950.
🧠 Referências psicanalíticas fundamentais
FREUD, Sigmund. Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse (1916–1917). In: Gesammelte Werke, Band XI. Frankfurt am Main: S. Fischer Verlag, 1940. (Trad. brasileira: Conferências Introdutórias à Psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.)
FREUD, Sigmund. Das Unbehagen in der Kultur (1930). In: Gesammelte Werke, Band XIV. Frankfurt am Main: S. Fischer Verlag, 1948. (Trad. brasileira: O Mal-Estar na Civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.)
JUNG, Carl Gustav. Psychologie und Alchemie. Zürich: Rascher Verlag, 1944. (Trad. brasileira: Psicologia e Alquimia. Petrópolis: Vozes, 2008.)
JUNG, Carl Gustav. Der Mensch und seine Symbole. Zürich: Rascher Verlag, 1964. (Trad. brasileira: O Homem e Seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.)
LACAN, Jacques. Le Séminaire, Livre XI: Les Quatre Concepts Fondamentaux de la Psychanalyse. Paris: Seuil, 1973. (Trad. brasileira: O Seminário, Livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.)
LACAN, Jacques. Écrits. Paris: Seuil, 1966. (Trad. brasileira: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.)
🎨 Estudos modernos e contemporâneos sobre cor e comportamento
WRIGHT, Angela. The Beginner’s Guide to Colour Psychology. London: Kyle Cathie, 1995.
ELIOT, Andrew J.; MAIER, Markus A. “Color and Psychological Functioning: A Review of Theoretical and Empirical Work.” Frontiers in Psychology, v. 3, 2012. DOI:10.3389/fpsyg.2012.00248.
EYSENCK, H. J. “The Effects of Colour on Personality and Behaviour.” Journal of General Psychology, v. 21, n. 2, p. 469–487, 1939.
KAYA, Naz; EPPS, Helen H. “Relationship Between Color and Emotion: A Study of College Students.” College Student Journal, v. 38, n. 3, p. 396–405, 2004.
CHANGIZI, Mark A. The Vision Revolution: How the Latest Research Overturns Everything We Thought We Knew About Human Vision. Dallas: BenBella Books, 2009.
🌙 Fontes filosóficas, simbólicas e fenomenológicas
MERLEAU-PONTY, Maurice. Phénoménologie de la Perception. Paris: Gallimard, 1945. (Trad. brasileira: Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2011.)
BACHELARD, Gaston. La Poétique de l’Espace. Paris: PUF, 1957. (Trad. brasileira: A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.)
HILLMAN, James. The Soul’s Code: In Search of Character and Calling. New York: Random House, 1996. (Trad. brasileira: O Código do Ser. São Paulo: Cultrix, 2002.)
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dictionnaire des Symboles: Mythes, Rêves, Coutumes, Gestes, Formes, Figures, Couleurs, Nombres. Paris: Robert Laffont, 1969. (Trad. brasileira: Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.)
KLEE, Paul. Das Bildnerische Denken [O Pensamento Visual]. Basel: Schwabe Verlag, 1956. (Trad. inglesa: The Thinking Eye. New York: Wittenborn, Schultz, 1961.)
ZILBERMAN, Regina. O Olhar e a Cor: Literatura, Arte e Psicanálise. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2018.
🌐 Fontes digitais e institucionais
AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION (APA). Color Psychology: How Colors Influence the Mind and Emotions. Washington, DC: APA, 2022. Disponível em: https://www.apa.org.
ABRAFP – Associação Brasileira de Filosofia e Psicanálise. Curso de Formação em Psicanálise. Disponível em: https://www.abrafp.org/curso-de-psicanalise.




Comentários