A Tríade do Real, do Simbólico e do Imaginário: Os Três Mundos da Psicanálise e da Existência
- Deivede Eder Ferreira

- 16 de out.
- 8 min de leitura
Compreenda como o Real, o Simbólico e o Imaginário moldam a mente humana e revelam a estrutura oculta do nosso desejo.

Para aprofundar seu entendimento sobre os fundamentos da teoria lacaniana, recomendamos o Dicionário Básico de Psicanálise
1. Entre o Invisível e o Nomeável
Vivemos entre dois mundos: o que se mostra e o que se esconde. Entre o que podemos dizer — e o que apenas sentimos. A psicanálise de Jacques Lacan nasceu justamente nesse intervalo, nessa fresta onde o humano se revela fragmentado, dividido, atravessado pela linguagem.
Lacan não veio para simplificar Freud, mas para aprofundá-lo. Se Freud desvendou o inconsciente, Lacan o fez falar — e, ao fazê-lo, mostrou que o sujeito não é uma unidade, mas uma composição tensa entre três registros: o Real, o Simbólico e o Imaginário.
Esses três planos não são apenas conceitos; são modos de existir. São camadas da experiência que se entrelaçam, sustentando o edifício invisível da subjetividade. Não há sujeito fora deles. Não há amor, dor, identidade ou gozo que não passe, de alguma forma, pela teia que os conecta.
2. O Imaginário – O Espelho e a Ilusão de Completude
O Imaginário é o primeiro berço do “eu”. É o instante em que o bebê, ainda desorganizado em sensações e fragmentos de corpo, olha para o espelho e, pela primeira vez, reconhece uma forma inteira. Esse momento — que Lacan chamou de Estádio do Espelho — é o nascimento da imagem de si.
Mas essa imagem é uma ficção necessária. O bebê acredita ser aquilo que vê: um corpo unificado, coordenado, harmônico. No entanto, dentro dele ainda há dispersão, dependência, desordem. A imagem antecipa o que ele ainda não é — e, justamente por isso, o sujeito nasce alienado. Passa a se ver a partir de fora, a existir sob o olhar do outro.
O Imaginário é, portanto, o domínio da aparência, do reflexo, da identificação. É nele que formamos nossos ideais, nossas comparações, nossos ciúmes. É o terreno da vaidade, da inveja e também da ternura. Pois o amor, diz Lacan, é dar o que não se tem a quem não o é — e isso só é possível num campo onde a imagem engana, mas também sustenta.
Na era contemporânea, o Imaginário reina em sua glória digital. As redes sociais ampliaram o espelho lacaniano ao infinito: a imagem se multiplicou, o olhar do outro se tornou permanente, e a comparação virou forma de sofrimento. Vivemos sob o império da visibilidade, como se existir fosse sinônimo de ser visto.
Mas o Imaginário, por si só, é insuficiente. Ele dá forma, mas não dá sentido. Ele organiza o corpo, mas não estrutura o sujeito. Para isso, é preciso entrar em outro território: o da palavra, da lei, do símbolo.
3. O Simbólico – A Linguagem que Nos Atravessa
O Simbólico é o que nos humaniza — e, paradoxalmente, o que nos separa daquilo que somos. É o campo da linguagem, das leis, das normas que nos antecedem. Antes de nascer, já estamos inscritos em um sistema de palavras: temos nome, lugar, expectativa. Somos esperados — e esse “ser esperado” já nos insere na cadeia simbólica.
Quando o sujeito adentra o Simbólico, ele descobre que não é o centro do mundo. Há uma estrutura que o ultrapassa, uma ordem de significantes que o define sem que ele perceba. O Simbólico é o lugar onde o inconsciente se articula — pois, como dizia Lacan, “o inconsciente é estruturado como uma linguagem.”
Toda palavra carrega uma ausência. O nome substitui a coisa, mas nunca a contém por inteiro. Por isso, ao nomear o mundo, algo se perde. A linguagem nos permite pensar, mas também nos limita. Ela cria fronteiras para o indizível e constrói o labirinto onde o desejo se move.
O Nome-do-Pai, conceito central em Lacan, representa a entrada definitiva no Simbólico. Ele não é necessariamente o pai biológico, mas a função da lei, o interdito que organiza o desejo e impede o sujeito de se fundir ao objeto do amor. Sem essa interdição, o sujeito se afoga na demanda do outro — não há diferença entre o que se quer e o que se é.
No Simbólico, aprendemos a renunciar. Aprendemos que o prazer tem limite, que o gozo precisa ser mediado pela palavra, que a realidade é feita de regras que nos mantêm ligados ao outro. É o Simbólico que possibilita a cultura, o laço social, a transmissão da história. Mas também é ele que impõe o peso do dever, da culpa, da interdição.
Sem o Simbólico, o humano seria apenas corpo e instinto. Mas com ele, tornamo-nos seres da fala — condenados a dizer o que nunca basta.
4. O Real – O Impossível que Insiste
E há o Real. Não o real do cotidiano, das coisas palpáveis, mas o Real lacaniano: aquilo que não se representa, o que escapa à linguagem, o que não tem nome possível.
O Real é o ponto cego do discurso. É o grito que não se transforma em palavra, o trauma que não se simboliza, a perda que retorna sem explicação. É o impossível que insiste, o que resta quando todos os sentidos falham.
O Real não é o oposto do imaginário, nem um “mundo material”. É o núcleo de impossibilidade em torno do qual o sujeito gira. É o que nunca se inscreve totalmente no Simbólico e, por isso, retorna em forma de angústia, sintoma ou sonho.
Quando o Real invade, o sujeito sente que o chão se desfaz. A linguagem não basta, o corpo se torna estranho, o tempo perde sentido. Esses momentos — crises, perdas, traumas — são as brechas onde o Real se manifesta. E é justamente o trabalho analítico que tenta circundar esse impossível, dar-lhe borda, costurar sentido onde não há.
Lacan dizia que o Real é o que volta sempre ao mesmo lugar. É aquilo que, por não poder ser dito, retorna como repetição. Toda neurose, todo sintoma, é uma tentativa fracassada de simbolizar o Real — de transformar o indizível em narrativa.
O Real é o ponto mais íntimo e mais inatingível do sujeito. É o abismo onde o saber se dissolve, mas onde também habita o mais autêntico de nós: aquilo que não pode ser domesticado por palavras.
5. O Nó Borromeano – O Enlace dos Três Mundos
Lacan representou esses três registros — o Real, o Simbólico e o Imaginário — por meio da imagem dos nós borromeanos, três anéis entrelaçados de modo que, se um se rompe, os outros dois também se desfazem.
Essa figura não é apenas um esquema: é uma metáfora da estrutura do sujeito. Cada anel sustenta o outro. O Imaginário nos dá a forma, o Simbólico nos dá o sentido, e o Real nos dá o limite.
Quando o Imaginário se rompe, o sujeito perde sua imagem, sua consistência. Quando o Simbólico falha, o mundo perde o sentido e a linguagem se fragmenta. Quando o Real se impõe sem mediação, o sujeito se vê diante do inominável — e enlouquece.
A saúde psíquica, portanto, não é a ausência de conflito, mas o equilíbrio dinâmico entre esses registros. A análise não visa eliminar o Real, nem dissolver o Imaginário, mas fazer nó — dar consistência àquilo que somos, sem exigir perfeição.
O nó borromeano é também uma imagem da existência: três fios que se enlaçam no vazio, sustentando o mistério da vida.
6. A Tríade na Vida Contemporânea – Espelhos, Símbolos e Fendas
Vivemos uma época em que o Imaginário se hipertrofiou. O corpo tornou-se vitrine, o rosto um produto, a vida um espetáculo. Mas quanto mais o Imaginário se expande, mais o Real se infiltra pelas frestas. A ansiedade, o vazio, o cansaço de “manter a imagem” são sintomas de um Real que clama por lugar.
Ao mesmo tempo, o Simbólico enfraquece. As palavras perderam o peso da promessa, a lei perdeu a autoridade simbólica, e o discurso se fragmentou em múltiplas bolhas de sentido. Quando o Simbólico vacila, o sujeito perde amarras. Tudo é permitido — e, paradoxalmente, nada satisfaz.
O Real então se aproxima: sob a forma de colapsos, doenças psicossomáticas, compulsões, silêncios impossíveis de preencher. Vivemos tempos de excesso de imagem e escassez de palavra, e talvez por isso a psicanálise seja mais necessária do que nunca.
A tarefa analítica é reconduzir o sujeito à escuta — ajudá-lo a habitar o Simbólico sem se perder no Imaginário, e a nomear o Real sem se afogar em seu abismo.
7. O Real, o Simbólico e o Imaginário na Clínica
Na clínica, esses três registros se entrelaçam em cada palavra do paciente. O Imaginário aparece nos relatos de si, nas comparações, nas idealizações. O Simbólico se manifesta nas repetições, nos lapsos, nos significantes que retornam. E o Real surge como aquilo que resiste ao discurso — o que o sujeito tenta dizer, mas não consegue.
O analista, atento, não busca “explicar” o Real, mas fazer borda. A escuta é uma forma de costura: o que o sujeito não consegue dizer, ele pode ao menos circundar. É nesse contorno que se abre o espaço do desejo.
O Real nunca será domado. Mas pode ser reconhecido, sustentado, atravessado. E, nesse atravessamento, algo do sujeito renasce — não inteiro, mas mais verdadeiro.
8. Conclusão – Habitar a Falta com Dignidade
Ser humano é viver entre três mundos: o das imagens que criamos, o das palavras que nos criam, e o do silêncio que permanece.
O Real, o Simbólico e o Imaginário não são apenas categorias da psicanálise; são as três faces do mistério humano. Entre elas, o sujeito se move, erra, deseja, sofre e ama.
Talvez o que Lacan nos ensine, no fundo, é que a vida não é feita para ser compreendida, mas para ser ouvida. E que o sofrimento, quando acolhido pela palavra, pode se transformar em forma — assim como o caos se torna cosmos quando o verbo o atravessa.
A tríade de Lacan é um convite a habitar o inacabado, a viver sem garantias, a aceitar que o vazio é parte da estrutura.
E, quem sabe, aprender com o Real que nem tudo precisa ter sentido — basta que tenha lugar.
Bibliografia
FERREIRA, Deivede Eder. Dicionário Básico de Psicanálise: Jacques Lacan (Coleção de Dicionários Psicanalíticos – Livro 2). Belo Horizonte: ABRAFP, 2024.
Obra de referência contemporânea que apresenta, de forma clara e conceitualmente precisa, os principais termos da teoria lacaniana, integrando o estudo do Real, do Simbólico e do Imaginário à prática clínica e filosófica.
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
Coletânea fundamental de textos, incluindo “O Estádio do Espelho como Formador da Função do Eu”, base do conceito de Imaginário.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 3: As Psicoses (1955–1956). Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
Fonte principal sobre o Nome-do-Pai e a estrutura simbólica da lei.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 5: As Formações do Inconsciente (1957–1958). Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
Fundamenta a formulação lacaniana do inconsciente como linguagem.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
Desenvolve a noção do Real como aquilo que resiste à simbolização.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: Mais, Ainda (1972–1973). Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
Expõe o Real em sua dimensão do gozo e da impossibilidade de inscrição.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 22: R.S.I. (1974–1975). Texto inédito; edições de estudo disponíveis em traduções comentadas.
Introduz a formalização topológica dos nós borromeanos e a estrutura dos três registros.
NASIO, Juan-David. Os Grandes Conceitos da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.
Leitura introdutória que facilita a articulação entre teoria e clínica lacaniana.
FINK, Bruce. O Sujeito Lacaniano: Entre a Linguagem e o Gozo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
Interpretação didática e contemporânea da estrutura do sujeito em Lacan.
MILNER, Jean-Claude. O Amor da Língua. São Paulo: Escuta, 2002.
Reflexão linguística e filosófica sobre a linguagem e o gozo, em diálogo com




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