O Vácuo Afetivo: Quando o Som do Amor Não Encontra Meio
- Deivede Eder Ferreira

- 10 de out.
- 8 min de leitura
Atualizado: há 1 dia

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Há uma lei na física que eu desconhecia até pouco tempo: no vácuo, o som não se propaga. Foi uma jovem estudante de física quem me disse isso, durante um encontro recente. Tinha o olhar vivo e uma leveza curiosa no modo de falar, como quem explica o cosmos enquanto observa o chão. Quando pronunciou a frase, algo nela me atravessou. Eu não sabia que aquelas palavras — ditas de modo quase casual — ficariam ecoando em mim, muito além da conversa. Hoje percebo que falávamos de mais do que física: falávamos do amor, da ausência, e do que acontece quando o humano tenta fazer o coração se propagar num espaço sem ar.
Durante dias, aquela frase ficou reverberando. “No vácuo, o som não se propaga.” E quanto mais eu pensava nela, mais ela se tornava metáfora — para as relações, para o silêncio, para tudo aquilo que o amor tenta dizer e não encontra meio.
I. O som que vibra dentro
Desde criança, sempre fui sensível aos sons. O barulho do vento nas frestas, o ranger da madeira, a respiração de quem dorme ao lado. Esses pequenos sons me davam uma sensação de presença, como se o mundo dissesse: “estou aqui”.
Na física, o som é apenas vibração de partículas. Mas no humano, o som é vibração de sentido. É o modo como o afeto se faz audível. Quando alguém diz “eu te escuto”, está dizendo “eu te reconheço como corpo que vibra no mesmo ar que o meu”.
Quando não há esse ar — quando há indiferença, frieza, descuido — o som morre. O coração pode gritar, o olhar pode implorar, mas nada se propaga. Esse é o vácuo afetivo: o espaço psíquico onde o amor não encontra atmosfera para existir.
II. O vácuo afetivo
O vácuo afetivo não é a solidão física. É o vazio relacional — o lugar onde o outro está presente, mas não se faz meio. É uma ausência densa, invisível, quase científica: não há moléculas de escuta, nem partículas de presença.
No vácuo afetivo, a palavra dita não encontra eco; o gesto se perde; o toque não tem resposta. É quando a emoção se torna som aprisionado — uma frequência que tenta atravessar o nada.
E o que mais dói é que o vácuo afetivo não é feito de distância, mas de proximidade sem conexão. É o corpo ao lado que não vibra, o olhar que não devolve luz, a conversa que existe mas não comunica. É o momento em que se percebe que estar com alguém não é o mesmo que ser ouvido por alguém.
III. A física do amor
Quando penso nisso, gosto de imaginar o amor como um fenômeno acústico. O amor é o meio que permite a propagação do som da alma. Quando há confiança, presença e afeto, as partículas psíquicas se tocam: o som se espalha, a palavra vibra, o corpo se torna instrumento.
Mas quando há medo, negação, orgulho ou indiferença, o ar rarefaz. As ondas afetivas não chegam ao outro; batem e voltam, colidindo consigo mesmas. Esse é o eco interno do sofrimento: a dor que retorna porque não encontrou ouvido.
E é curioso perceber como a própria física antecipa o que a psicanálise descobriria depois: sem meio, não há comunicação; sem Outro, não há inconsciente; sem laço, não há sujeito.
IV. O silêncio que vibra
Há silêncios que são ausência, e há silêncios que são presença. O silêncio do vácuo é ausência total: nada vibra. Mas o silêncio da escuta é o oposto — é o espaço onde o som do outro encontra liberdade para existir.
O analista, em sua ética, cria esse tipo de silêncio. Ele se cala, mas escuta. Não fala, mas vibra junto. Seu silêncio é o ar simbólico que permite ao som inconsciente se propagar.
Penso que amar é algo parecido. Amar é criar ar em torno do outro — não sufocar, não antecipar, não interromper. É permitir que o som dele exista, mesmo quando não se compreende totalmente a melodia.
V. O ruído do medo
Muitas vezes, o vácuo afetivo não é provocado pelo outro, mas por nós mesmos. Carregamos medos antigos, vozes congeladas, dores não ditas. E cada uma delas atua como uma espécie de descompressão interna: o ar da alma se rarefaz, e o som do amor deixa de circular.
É o medo de ser rejeitado, o receio de parecer frágil, o trauma de não ter sido ouvido antes. Tudo isso cria um campo de silêncio dentro de nós.
E quando alguém se aproxima e tenta escutar, reagimos com defesas: ironia, racionalização, distanciamento. Às vezes, é o medo de ser realmente visto. Outras, o receio de perder o controle se o som do afeto atravessar demais. O resultado é o mesmo: o som está ali, mas ainda não há ar suficiente para deixá-lo propagar.
VI. A anatomia do eco
O eco é o som que não encontrou destino. Na física, ele nasce quando a onda sonora bate numa superfície dura e volta. Na vida afetiva, ele nasce quando a palavra amorosa encontra resistência — quando a escuta é substituída por julgamento, ou quando o gesto de ternura retorna vazio.
Muitas relações se transformam em eco. Um fala, o outro responde, mas ninguém realmente escuta. E nesse ruído de devoluções automáticas, o que se perde é a vibração autêntica.
O eco é a metáfora do vínculo sem presença: parece comunicação, mas é apenas repetição.
VII. O corpo como meio
O corpo é o primeiro meio de propagação do som afetivo. Antes da palavra, o bebê reconhece o amor pela vibração da voz, pelo calor do toque, pelo ritmo do coração que embala. Cada batida é um som primitivo, uma lembrança ancestral de que “há ar” entre ele e o mundo.
Quando crescemos, continuamos buscando esse mesmo meio — só mudamos o idioma. O abraço, o olhar, o silêncio compartilhado: todos são formas de dizer “aqui há ar, pode vibrar”.
Por isso o desamor é sempre físico. Não há desamor puramente mental — há corpos que deixaram de vibrar juntos. E o vácuo afetivo é justamente o espaço onde o corpo não encontra resposta, onde o toque não atravessa, onde o olhar não encontra ressonância.
VIII. Entre o som e o sentido
Uma vez li que o som é, em essência, o movimento que se transforma em tempo. Na vida afetiva, é o mesmo: o que vibra dentro de nós só ganha tempo quando encontra espaço. O amor, então, é o meio-tempo da existência — aquilo que faz o instante ecoar um pouco mais.
Mas quando o amor morre, o tempo se contrai. Tudo fica curto, apressado, raso. O mundo perde profundidade porque o som perdeu meio.
O vácuo afetivo é também o colapso do tempo interior — quando a alma, sem vibração, para de expandir. Nada reverbera, e a existência se torna pura superfície.
IX. A escuta como salvação
Escutar é o ato mais humano que existe. E é também o que mais exige coragem, porque implica suportar o som do outro sem se defender.
Escutar é ser ar para o outro — é permitir que o som dele se propague sem interferência. É o gesto que transforma o vácuo em atmosfera, o isolamento em vínculo, o grito em palavra.
Por isso, toda cura começa pela escuta. Na análise, no amor, na amizade. Escutar é restituir o meio — é devolver às vibrações da alma o espaço necessário para existir.
X. Quando o amor rarefaz
Há momentos em que o amor começa a perder densidade, como o ar rarefeito das montanhas. Ainda existe, mas já não sustenta o som. As palavras passam a soar longes, os gestos perdem temperatura, e o olhar — antes cheio de vida — se torna transparente.
Nesses momentos, o amor não morre: ele se torna vácuo. E a dor que sentimos não é apenas a da ausência, mas a da impossibilidade da propagação. Queremos falar, mas o outro não ouve. Queremos tocar, mas o toque não chega. E o que resta é o eco interno da tentativa frustrada — o som que volta para dentro, aumentando a solidão.
XI. A densidade da presença
Estar com alguém, de verdade, é emprestar densidade ao espaço. É transformar o ar comum em meio vibrante. Não é o que se diz, mas o modo como se está.
Presença é o oposto do vácuo. Ela é o ar simbólico que dá existência ao som da relação. Por isso, há encontros breves que deixam marcas profundas — porque, por um instante, houve ar, houve vibração, houve escuta.
Lembro-me de um desses encontros recentes. Falamos sobre o som e o vácuo, e por alguma razão a conversa parecia ecoar mais fundo do que o tema sugeria. Ela disse que o som não se propaga no vácuo. E eu pensei: talvez seja por isso que, por algumas horas, tudo vibrou — porque ali havia ar, olhar e sentido.
XII. O medo do meio
O vácuo afetivo às vezes é também uma escolha inconsciente. Criamos vácuos para não vibrar demais, para não sentir o som do que dói. Mas o preço é alto: sem vibração, não há música; sem ar, não há vida.
Há quem prefira o vácuo porque o som pode ser perigoso. O som do amor é instável, imprevisível — ele pode ferir, expor, transformar. Por isso, muitas vezes, o sujeito prefere a segurança do silêncio à vulnerabilidade da vibração.
Mas o silêncio total é uma forma de morte. É a paralisia do afeto, o congelamento do som. E nenhuma defesa justifica viver sem eco.
XIII. O amor como atmosfera
O amor não é um sentimento: é um estado físico do ser. É o ar que envolve dois corpos e permite que o som da vida se propague. É o meio invisível que transforma gestos em vibrações compartilhadas.
Por isso, amar é mais do que gostar: é criar condições de propagação. É construir um espaço de densidade simbólica, onde o som do outro não morre.
E quando esse espaço se forma — mesmo que por um instante —, tudo vibra. O corpo vibra, o tempo vibra, o mundo parece respirar em outro ritmo. É a experiência mais próxima da eternidade que o humano pode alcançar.
XIV. Quando o som volta
Há sons que se perdem, e há sons que voltam depois de anos. Uma palavra dita no passado, um gesto esquecido, uma lembrança que reaparece como vibração residual. Nada do que vibrou se perde totalmente — apenas muda de frequência.
A psicanálise entende isso bem: o inconsciente é o arquivo de todos os sons não propagados. Tudo o que não encontrou meio retorna, mais cedo ou mais tarde, pedindo ar. E cada vez que escutamos alguém — ou somos escutados —, ajudamos esses sons antigos a atravessar.
Amar, então, é também uma forma de restituição acústica do passado. É dar voz ao que ficou preso no vácuo da história.
XV. A última vibração
Talvez o que nos salve, no fim, não seja o amor em si, mas a possibilidade de vibrar. De permitir que algo dentro de nós ainda encontre meio, ainda se propague. Mesmo que o outro não ouça, mesmo que o ar seja pouco, há sempre uma última vibração possível — um gesto, um olhar, uma palavra sincera.
A alma humana só morre quando deixa de vibrar. Enquanto houver som, há sentido.
XVI. Epílogo
Hoje entendo melhor a frase que me disseram: o som não se propaga no vácuo. Entendo que ela fala da física, sim, mas também da psique, da vida, das relações. Porque o amor precisa de ar — e o ar, de presença.
O vácuo afetivo é o oposto da vida. É o silêncio onde ninguém escuta, o espaço onde nenhuma palavra se torna ponte.
Por isso, cada vez que encontro alguém com quem tudo vibra — mesmo que por poucas horas —, reconheço o milagre da propagação. O instante em que o ar se torna denso, o som ganha corpo, e o humano, por um breve tempo, respira.
No vácuo, o som não se propaga. Mas quando há ar, olhar e sentido, até o silêncio fala.
Quem gostou deste artigo pode aprofundar-se na escuta e na linguagem simbólica da psicanálise através das obras e formações do autor:
O Vácuo Afetivo: Quando o Som do Amor Não Encontra Meio — uma jornada poética e teórica sobre o amor como meio de propagação do ser.
Dicionário Básico de Psicanálise — referência essencial para estudantes e profissionais que desejam compreender a estrutura conceitual da psicanálise.
Curso de Formação em Psicanálise da ABRAFP — um percurso formativo completo, onde teoria, clínica e ética se entrelaçam para formar escutadores do inconsciente.
Aprofunde-se. Cada leitura é um passo em direção ao som que vibra dentro.
Sobre o autor:
Deivede Eder Ferreira é psicanalista, escritor e fundador da ABRAFP — Associação Brasileira de Filosofia e Psicanálise.
Autor de O Vácuo Afetivo: Quando o Som do Amor Não Encontra Meio e do Dicionário Básico de Psicanálise, dedica sua obra a compreender os silêncios da alma e as vibrações simbólicas do amor.



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