Determinismo e Psicanálise: Entre o Inconsciente, o Desejo e a Responsabilidade
- Deivede Eder Ferreira

- 7 de out.
- 11 min de leitura
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O ser humano é o único animal que tropeça em si mesmo. A pedra sobre a qual ele cai é interna, invisível, feita de memória, desejo e repetição. É nesse ponto que a psicanálise de Freud ergue uma das mais subversivas de suas teses: nada na vida psíquica é fruto do acaso. O lapso, o sintoma, o esquecimento e o sonho obedecem a uma lógica de sentido — ainda que este sentido escape ao sujeito consciente. Assim nasce o conceito de determinismo psíquico, uma das chaves mais complexas e mal compreendidas da teoria freudiana.
Quando Freud afirma que “o acaso não existe” na vida anímica, ele não reivindica um destino místico nem uma lei mecânica que governe a mente. Sua ideia de determinismo está a meio caminho entre a causalidade e o desejo. O que determina o sujeito não é uma engrenagem material, mas a insistência do inconsciente em se manifestar — uma força simbólica, pulsional, histórica. O homem, para Freud, não é livre como imagina, mas tampouco está condenado a ser uma marionete. Ele é determinado por aquilo que desconhece, e é justamente essa ignorância que o impele a falar, sonhar, repetir e, quem sabe, transformar-se.
I – O determinismo como herança e ruptura
Para compreender o alcance revolucionário da noção freudiana de determinismo, é preciso regressar ao solo filosófico que a precede. Desde Laplace e Descartes, o pensamento moderno acreditava na completude causal do mundo. O determinismo clássico — herdeiro da física newtoniana — descrevia o universo como um mecanismo perfeito, regido por leis matemáticas imutáveis. Laplace chegou a imaginar um intelecto hipotético, capaz de conhecer a posição e a velocidade de todas as partículas do universo; esse intelecto poderia prever o futuro com exatidão. Nesse modelo, liberdade e acaso não passam de ilusões subjetivas.
A psicanálise nasce dentro dessa atmosfera científica do século XIX, marcada pelo positivismo e pela fé na razão. Freud, formado em medicina e neurologia, adota em parte esse espírito: ele busca leis, coerências, nexos causais. Mas algo em seu caminho clínico o leva além do paradigma mecânico. Ao ouvir os pacientes histéricos, percebe que suas dores e paralisias não obedecem a uma causa orgânica. A causalidade está ali, mas deslocada: não é fisiológica, é simbólica. O corpo sofre o que a linguagem não pôde dizer.
Assim, Freud mantém o determinismo — mas o transfere do corpo material para o campo psíquico. Ele não rompe com a ideia de causalidade, mas a reinventa. O determinismo psíquico não é linear, mas associativo; não é mecânico, mas significante. Cada sintoma é o efeito de um conflito inconsciente, de uma história recalcada, de um desejo que retorna travestido.
Em vez de destruir o determinismo, Freud o inscreve no terreno da subjetividade, abrindo uma nova forma de ciência — uma ciência do singular, da falha, do equívoco. O erro, antes visto como ruído, passa a ser o próprio sinal da verdade psíquica.
II – O determinismo psíquico e o sentido do sintoma
Em A Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901), Freud demonstra com precisão esse princípio: um lapso de linguagem, um esquecimento de nome, uma troca de palavras — nada disso é arbitrário. São efeitos de um encadeamento inconsciente que revela o desejo recalcado.
O determinismo psíquico se manifesta na forma de sintomas, sonhos e atos falhos. Cada um deles é uma solução de compromisso entre a força pulsional (que busca expressão) e a censura do Eu (que tenta conter). O sintoma, portanto, não é um erro sem sentido, mas um discurso cifrado. Freud o descreve como “o retorno do recalcado”, uma mensagem que o sujeito não sabe que enviou.
Um exemplo clássico: o paciente que se atrasa repetidamente para o próprio tratamento. Superficialmente, pode parecer mero descuido; mas, sob o olhar da psicanálise, trata-se de um ato determinado — talvez pela resistência ao saber sobre si, pelo medo de perder o sintoma, ou pelo prazer secreto em frustrar o analista. Em todos os casos, o ato é intencional sem ser consciente.
O determinismo psíquico introduz, portanto, uma nova causalidade: a causalidade do desejo. Ela não se mede por cronologia, mas por encadeamento simbólico. O sintoma não é o resultado de um evento recente, mas o ponto de condensação de uma história. O inconsciente não é atemporal porque ignora o tempo, mas porque repete o passado no presente.
Por isso, o determinismo psíquico não aprisiona o sujeito — ele o situa. Saber que há um sentido naquilo que se repete é o primeiro passo para a transformação. É o saber inconsciente que, uma vez revelado, abre a possibilidade de escolha.
III – Repetição e destino: o sujeito entre compulsão e criação
Freud percebeu cedo que o homem não apenas sofre o passado — ele o repete. Na Recordar, Repetir e Elaborar (1914), o autor nota que o paciente tende a reviver suas experiências traumáticas, em vez de simplesmente recordá-las. Essa tendência, chamada de compulsão à repetição, é talvez a forma mais radical de determinismo psíquico.
O sujeito repete sem saber que repete. Volta aos mesmos lugares, aos mesmos tipos de relação, às mesmas frustrações, como se obedecesse a um roteiro invisível. E, no entanto, não é o destino que o guia, mas o desejo recalcado. A repetição é a tentativa inconsciente de dominar o trauma, de transformá-lo em narrativa.
Freud vai mais longe em Além do Princípio do Prazer (1920): ele propõe que a repetição é movida por uma força mais arcaica que o desejo — a pulsão de morte. Essa pulsão não busca o prazer, mas a descarga, o retorno ao inorgânico. Assim, o determinismo psíquico se complexifica: há um encadeamento pulsional que ultrapassa o princípio do prazer e desafia a razão.
Mas há um ponto ético crucial aqui: o sujeito não é reduzido a esse automatismo. A análise cria um espaço onde a repetição pode ser posta em palavra. Quando o paciente diz: “sempre me envolvo com pessoas que me abandonam”, ele transforma o destino em discurso. E nesse ato de nomeação, algo se desloca. O que antes era destino torna-se história, e a história pode ser ressignificada.
Assim, a psicanálise não promete libertar o sujeito da determinação, mas permitir que ele faça algo com ela. O verdadeiro ato de liberdade, para Freud e Lacan, é assumir o próprio determinismo — não como fatalidade, mas como estrutura que pode ser reescrita.
IV – A responsabilidade diante do inconsciente
Se o sujeito é determinado por processos inconscientes, pode ele ser responsabilizado por seus atos? Essa é a questão ética central da psicanálise.
A resposta freudiana é paradoxal: o sujeito é responsável, mesmo pelo que não sabe. Isso não significa culpa moral, mas reconhecimento da própria divisão. Ser sujeito, na psicanálise, é aceitar que não se é senhor da própria casa. No entanto, ao reconhecer isso, o sujeito pode agir — e essa ação é ética.
Lacan retoma essa questão ao dizer que o sujeito é “responsável pelo seu inconsciente”. Isso não implica controle, mas resposta. A palavra “responsabilidade” vem do latim respondere: responder a algo. O sujeito ético, portanto, é aquele que responde ao que o determina.
Na clínica, isso se traduz no momento em que o analisando deixa de culpar o outro — o pai, o parceiro, a sociedade — e começa a interrogar o próprio desejo. Ele percebe que sua repetição tem uma lógica interna, e que há um gozo (no sentido lacaniano de jouissance) implicado em seu sofrimento. Essa virada — do “sou vítima” para “sou parte da cena” — é o que marca o nascimento do sujeito do inconsciente.
Freud jamais acreditou na inocência absoluta do sintoma. Mesmo o sofrimento mais genuíno carrega uma parcela de escolha, ainda que inconsciente. Essa ideia é escandalosa, porque desloca a culpa sem eliminá-la. O sujeito não é culpado pelo inconsciente, mas é responsável por escutá-lo.
A responsabilidade, nesse contexto, é o contrário do moralismo. É o ato de assumir o desejo, mesmo quando ele fere a imagem ideal do eu. É nesse ponto que a ética psicanalítica se distingue da ética religiosa: ela não exige pureza, mas verdade.
V – Determinismo e liberdade: uma nova dialética
A psicanálise redefine a liberdade. No pensamento comum, ser livre é “fazer o que se quer”. Para Freud, isso é ilusão: o sujeito não sabe o que quer, e o que julga querer é muitas vezes o disfarce de outra coisa. A verdadeira liberdade não é a ausência de determinação, mas a possibilidade de reconhecer e elaborar as forças que nos determinam.
Freud escreve, em uma carta a Fliess: “O homem é o senhor de seus atos no mesmo grau em que é senhor de seu inconsciente.” Ou seja, parcialmente. Essa parcialidade é o campo da ética.
Lacan aprofundará essa ideia ao afirmar que “a liberdade é o modo como o sujeito assume a determinação do significante”. Não há sujeito fora da linguagem, e é na fala que o sujeito pode subverter a cadeia simbólica. Falar é o ato mínimo de liberdade possível — e o mais radical.
Na clínica, a experiência do “ato” é justamente essa ruptura no encadeamento automático. Quando o analisando, diante da repetição, enuncia algo novo — quando reconhece o próprio desejo e age de forma inédita —, ele realiza um ato ético. Esse ato não cancela o determinismo, mas o desloca.
Assim, o determinismo psíquico não nega a liberdade; ele a funda. A liberdade surge não como escolha arbitrária, mas como o instante em que o sujeito consente com o real de sua determinação e o transforma em gesto.
VI – A ética da escuta e o lugar do analista
Se o sujeito é determinado pelo inconsciente, o que pode o analista? Freud e Lacan são unânimes: o analista não interpreta para libertar, mas para fazer o sujeito ouvir o que o determina. A interpretação é uma operação de deslocamento — ela toca o sentido, mas não o fecha.
O analista ocupa o lugar do sujeito-suposto-saber, um ponto vazio que permite ao analisando projetar o saber inconsciente. É nesse jogo que se revela o determinismo psíquico: na transferência, o paciente repete, desloca, atualiza. O analista devolve o espelho, mas sem moralizar.
O tratamento analítico é, portanto, uma experiência de verdade, não de cura. Curar-se, para a psicanálise, é tornar-se responsável pelo próprio sintoma — isto é, compreender o gozo que ele encobre e escolher outro destino para essa energia.
A ética do analista, segundo Lacan, é “não ceder de seu desejo”. Isso significa não substituir o desejo do paciente pelo seu, não impor moral, não propor soluções. A psicanálise não promete felicidade, mas lucidez. E é essa lucidez que transforma o determinismo em caminho de criação.
Em última instância, o analista não liberta ninguém — ele apenas sustenta o espaço onde o sujeito possa libertar-se de sua própria repetição. E isso, paradoxalmente, é o que há de mais libertador.
VII – Determinismo, pulsão e gozo: a complexidade do humano
Há uma diferença essencial entre o determinismo da natureza e o determinismo do inconsciente. O primeiro é regido por leis universais; o segundo, por histórias singulares. Na natureza, os fenômenos se repetem identicamente; no inconsciente, a repetição é sempre falha, e é nessa falha que o sujeito se constitui.
A psicanálise introduz o conceito de pulsão (Trieb), distinto de instinto. A pulsão não tem objeto fixo nem meta final: ela circula em torno de algo perdido. Essa estrutura circular da pulsão garante que o sujeito nunca se satisfaça plenamente, o que o obriga a desejar sempre.
A pulsão é determinada — mas sua determinação é excessiva, ela não se fecha numa fórmula. É por isso que o gozo (jouissance) aparece como uma espécie de paradoxo: é o prazer que dói, o desprazer que se repete. O sujeito é determinado a buscar o gozo, mesmo quando ele o destrói.
Essa estrutura nos obriga a repensar a ideia de autonomia. O Eu racional, que imagina governar seus impulsos, é apenas um produto secundário da economia pulsional. Por isso, Freud dizia que o Eu “não é senhor em sua própria casa”. Mas se o Eu não comanda, quem comanda? Ninguém. Há apenas um campo de forças simbólicas em movimento, e o sujeito se inscreve nesse campo como efeito de linguagem.
O determinismo psicanalítico é, portanto, um determinismo da falta, não da plenitude. Somos determinados pelo que nos falta, pelo que perdemos, pelo que nunca tivemos. Essa falta é o motor do desejo e a condição da cultura.
VIII – A clínica como ética da singularidade
Na prática clínica, o reconhecimento do determinismo psíquico exige uma escuta radical. O analista não julga, não prevê, não controla — ele acolhe o acaso como portador de sentido. Cada palavra, cada silêncio, cada tropeço é tratado como efeito de um encadeamento simbólico.
O determinismo, longe de anular o sujeito, é o que o funda como singular. Não há duas histórias inconscientes idênticas, assim como não há dois sintomas iguais. O que se repete é a estrutura, não o conteúdo.
Essa visão subverte a moral terapêutica tradicional, que tende a ver o sofrimento como erro a ser corrigido. Para a psicanálise, o sofrimento é porta de entrada para o inconsciente. O que o sujeito faz com seu sintoma é o que o define.
Por isso, o analista não promete eliminar o sintoma, mas dar-lhe lugar de palavra. A cura é efeito de um trabalho de escuta, não de correção. Nesse sentido, o determinismo psíquico não é uma prisão, mas uma gramática a ser lida.
A ética da psicanálise é, assim, a ética do sujeito do inconsciente — aquele que se responsabiliza por sua história, mesmo sabendo que ela não é inteiramente sua. Freud dizia que o sintoma é o substituto de uma satisfação pulsional impedida. A análise visa restituir ao sujeito o poder de falar sobre essa satisfação — e, eventualmente, transformá-la.
IX – Entre o destino e o desejo
Ao final, o determinismo psicanalítico revela uma verdade desconfortável e libertadora: somos movidos por forças que não controlamos, mas podemos decidir como responder a elas. Essa decisão é o núcleo da ética.
O destino, na psicanálise, não é um fardo metafísico, mas a forma como o inconsciente escreve nossa história. O desejo é o nome que damos à possibilidade de ler essa escrita de outro modo.
Entre destino e desejo, o sujeito se movimenta, repete, fala, erra, ama, sonha — e é nesse movimento que se constitui. A psicanálise não vem para apagar o determinismo, mas para transformá-lo em linguagem e responsabilidade.
O sujeito livre, no horizonte freudiano, é aquele que reconhece a necessidade que o habita e, mesmo assim, age. A liberdade não é a ausência de correntes, mas o saber que elas existem e o gesto de dançar com elas.
Conclusão – O paradoxo da liberdade determinada
A psicanálise é, ao mesmo tempo, a ciência da determinação e da liberdade. Ela nos ensina que o sujeito é determinado pelo inconsciente, mas é livre para assumir sua determinação.
Esse paradoxo define a ética freudiana: o homem não é senhor de seu desejo, mas pode fazer-se responsável por ele. É nesse sentido que o determinismo psíquico não é uma condenação, mas uma via de emancipação.
Freud substitui o determinismo físico por um determinismo simbólico; e Lacan transforma essa descoberta em uma ética: “O sujeito só é responsável por sua posição de sujeito.” O determinismo, assim, deixa de ser um destino imposto e torna-se uma estrutura de sentido em movimento.
Em última instância, o que a psicanálise nos oferece é a reconciliação entre destino e liberdade, entre o necessário e o possível. O inconsciente determina — mas o sujeito fala. E, ao falar, ele se reinventa.
Sobre o autor
Deivede Eder Ferreira é psicanalista, pós-graduado em Psicanálise e fundador da Associação Brasileira de Filosofia e Psicanálise (ABRAFP). Atua na intersecção entre filosofia, ética e clínica, explorando as tensões entre o inconsciente e a liberdade humana. Sua escrita une rigor teórico e linguagem acessível, convidando o leitor a pensar o sujeito para além do senso comum.
Autor de diversas obras voltadas à compreensão do pensamento psicanalítico, Deivede é também responsável pela coleção Dicionários Psicanalíticos, que apresenta de forma clara e profunda os fundamentos das principais escolas da psicanálise:
Sua página de autor na Amazon reúne obras que dialogam entre psicanálise, filosofia e literatura contemporânea, refletindo uma trajetória dedicada à escuta e à busca de sentido nas entrelinhas da existência.
Bibliografia
FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
FREUD, Sigmund. A Psicopatologia da Vida Cotidiana. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
FREUD, Sigmund. Recordar, Repetir e Elaborar (1914). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer (1920). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 7: A Ética da Psicanálise. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.
LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Bertrand. Vocabulário da Psicanálise. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
RICOEUR, Paul. Freud: Uma Interpretação da Cultura. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada. Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 2009.




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