Mentira na Infância e Psicanálise: Por que o Nariz de Pinóquio Nunca Deveria Crescer
- Deivede Eder Ferreira

- há 20 horas
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Atualizado: há 19 horas

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1. Quando o nariz cresce, o desejo encolhe
Dizem que a mentira infantil deve ser corrigida cedo, antes que se torne hábito. Mas há mentiras que não são vícios — são gritos sutis de sobrevivência. Cada vez que uma criança mente, algo dentro dela tenta preservar o mistério do desejo, resistindo à invasão do olhar que quer tudo saber, tudo controlar, tudo corrigir.
O mito de Pinóquio ensina às crianças que o nariz cresce quando se mente. Mas, na verdade, o que cresce é o olhar do outro — o olhar que vigia, julga e molda. O conto transforma a imaginação em culpa e a fantasia em pecado. O boneco quer ser menino, mas só se tornará “real” quando disser sempre a verdade — ou seja, quando se tornar transparente ao desejo do outro.
Mas o sujeito nasce do direito ao segredo. É o mistério que funda a identidade. E é justamente aí que o nariz de Pinóquio deveria permanecer o mesmo: porque sem o direito de mentir, a criança não pode desejar.
2. A mentira como gesto de criação
Freud ensinou que o inconsciente não conhece a mentira. Ele não tem moral, nem distinção entre verdade e engano — apenas linguagem. Quando uma criança mente, não é o inconsciente que mente, mas a linguagem que tenta reorganizar uma experiência psíquica. A mentira é um ato criativo, um modo de dar forma àquilo que ainda não se pode dizer diretamente.
A verdade, para Freud, é uma construção — não uma fotografia dos fatos. O sintoma, por exemplo, “mente” o tempo todo: diz algo em forma de desvio, substitui um desejo por outro, disfarça o que o sujeito não pode sustentar. Mas é justamente nesse disfarce que a verdade se revela.
Da mesma forma, a mentira infantil revela uma verdade emocional. A criança mente para proteger o que sente, para manter viva uma fantasia que o adulto ameaça apagar. A mentira é uma invenção de si — um espaço de jogo entre o que é e o que se gostaria de ser.
Repreender isso é como arrancar uma flor porque nasceu torta.
3. Entre a culpa e a criatividade – Klein e Winnicott
Melanie Klein via a mentira infantil como uma tentativa de reparação simbólica. Quando a criança mente, não o faz apenas para escapar da punição, mas também para reconstruir uma cena interna. Ela deseja corrigir, dentro de si, algo que sente ter destruído — o amor da mãe, a harmonia do mundo, o próprio valor. A mentira, nesse sentido, é uma tentativa mágica de restaurar o bem perdido.
Já Winnicott, por sua vez, enxergava na mentira um sinal de vida psíquica saudável. Ela indica que a criança está experimentando a fronteira entre o que é real e o que é imaginário — um território que ele chamou de espaço potencial. Nesse espaço, a criança brinca, cria, imagina, mente — e com isso aprende a distinguir o dentro e o fora, o eu e o outro.
Punir a mentira nessa fase é como interromper um nascimento. A criança precisa testar o limite do real para poder reconhecê-lo. E a mentira é uma forma primitiva de dizer:
“Eu também existo, mesmo quando o mundo não acredita nas minhas palavras.”
4. A moral que mata o mistério
A história de Pinóquio é uma das primeiras lições de moral que damos às crianças. Mas, quando vista pela lente da psicanálise, ela se revela uma parábola sobre o controle parental. Gepeto cria o boneco que sonha ser menino, mas só o ama de fato quando ele deixa de mentir. Em outras palavras: o amor é condicionado à submissão.
O que há de mais violento no conto não é o nariz que cresce, mas a mensagem implícita:
“Você só será amado se disser a verdade que eu quero ouvir.”
Esse é o nascimento do supereu infantil — a voz interior que repete o olhar moral do adulto. Cada vez que a criança mente e é punida, ela grava na alma o pacto da obediência: “Para ser boa, preciso anular o que desejo.”
A mentira, então, deixa de ser um ato criativo e se transforma em culpa. E, com o tempo, o adulto que nasceu dessa criança aprenderá a mentir de outro modo — para si mesmo. Mentirá seus desejos, suas raivas, seus sonhos. E chamará isso de maturidade.
5. O olhar que invade – o amor que sufoca
A mentira infantil floresce especialmente onde o amor é invasivo demais. A mãe que pergunta tudo, que quer saber tudo, que exige transparência total, não percebe que sua doçura contém um veneno simbólico: o da anulação do segredo.
Esse tipo de amor não aceita o silêncio, nem a diferença. Ele invade, penetra, interpreta antes de ouvir. Quer amor, mas teme a alteridade.
Por trás da vigilância está o medo: o medo de não ser necessária. Por isso, quando a criança mente, ela não está rompendo o amor — está apenas tentando respirar fora dele. É um pedido inconsciente:
“Deixa eu ter um canto do mundo que você não veja.”
Freud chamava isso de “proteção narcísica do eu” — o direito de preservar um pedaço de si contra o olhar do outro. Quando o amor se torna onisciente, a mentira vira refúgio.
6. O pai que escuta – o nascimento da palavra
O pai que escuta a mentira sem moralizá-la oferece algo raro: a tradução simbólica do desejo. Ele entende que a mentira é um modo de falar do que ainda não pode ser dito. Não responde com sermão, mas com escuta. Não exige confissão, mas oferece relação.
Ele pode dizer:
“Você disse isso, mas acho que queria me contar outra coisa. Quer tentar de novo?”
Esse gesto simples resgata o poder da palavra. A criança sente que pode existir mesmo quando não acerta. Que pode desejar sem medo de perder o amor.
Na psicanálise, isso é o equivalente ao que Winnicott chamava de ambiente suficientemente bom — um espaço onde o erro não destrói o vínculo, mas o aprofunda.
Quando o pai (ou o educador) reage com acolhimento simbólico, a mentira perde sua função defensiva e se transforma em linguagem verdadeira. O desejo se reconcilia com o amor.
7. O inconsciente e a verdade que não cabe na lógica
Na vida adulta, carregamos o eco das primeiras verdades impostas. Fomos ensinados que mentir é errado — e por isso aprendemos a mentir melhor. Mas há mentiras que não enganam ninguém: são tentativas de esconder o próprio sofrimento.
Freud dizia que o inconsciente não distingue o real do simbólico — ele opera por deslocamento e condensação. A mentira, portanto, é uma das formas pelas quais o inconsciente fala em liberdade. Quando uma criança mente, é o inconsciente que ensaia a linguagem da metáfora, como se dissesse:
“Não é bem isso que aconteceu, mas é isso que eu senti.”
E essa diferença entre o fato e o sentido é o terreno onde nasce o sujeito. A mentira infantil é, assim, o primeiro poema do inconsciente — o ponto onde o simbólico se sobrepõe ao literal.
8. O direito ao segredo
O adulto que exige sinceridade absoluta esquece que a formação do sujeito depende do segredo. A criança precisa ter um espaço não devassado, um território onde o olhar do outro não alcance. É nesse esconderijo simbólico que o eu se organiza.
Winnicott dizia que a autenticidade nasce quando o ambiente tolera a falsidade transitória. Ou seja: para que a criança se torne verdadeira, é preciso que ela possa mentir. A mentira é uma travessia. Quem a reprime, destrói o caminho antes que ele chegue ao outro lado.
Por isso, é perigoso usar o Pinóquio como instrumento moral. A fábula só é útil se for contada como metáfora da busca pelo próprio desejo, e não como manual de obediência. Pinóquio não precisava deixar de mentir — precisava de um olhar que não se assustasse com a sua invenção.
9. O adulto e suas mentiras morais
Toda moral excessiva na infância reaparece, mais tarde, como hipocrisia adulta. O homem que exige sinceridade absoluta dos outros é, geralmente, aquele que não suporta a própria verdade. E a mulher que confunde amor com transparência total vive presa ao espelho da culpa — esperando do outro o reflexo que perdeu em si.
A mentira reprimida volta como sintoma: no casamento, na religião, na política. O sujeito que não pôde mentir quando criança acaba mentindo a vida inteira — só que agora para manter a ilusão de pureza.
E o mais curioso: quanto mais tenta ser verdadeiro, mais se distancia de si mesmo. Porque, como dizia Freud, “a verdade do sujeito é sempre um meio-dito”. A pureza é o nome moral da castração simbólica.
10. A criança e o espelho do desejo
Quando uma criança mente, o adulto deveria perguntar:
“De que verdade ela está se defendendo?”
A mentira é uma forma de proteger-se de um olhar que não escuta. De manter vivo o direito de ser autor da própria história. O que ela cria com suas palavras é um espelho — e nele experimenta ser quem talvez não possa ser no mundo real.
Por isso, mentir é uma forma de brincar com o ser. E o brincar, como ensinou Winnicott, é o território mais puro da saúde emocional. Quando o adulto transforma a mentira em crime, ele destrói o jogo e substitui o desejo pela culpa.
11. Quando o amor exige confissão
O amor que exige transparência absoluta é o mais perigoso. É aquele que quer saber de tudo, ouvir tudo, estar em tudo — o amor que confunde intimidade com invasão. Muitos pais acreditam que sinceridade é sinônimo de confiança. Mas, para a psicanálise, confiança é poder ter segredos sem medo de perder o amor.
A criança precisa experimentar o limite entre o que pode dizer e o que quer guardar. Esse limite é o alicerce do inconsciente — o campo onde o desejo se organiza em torno do interdito. Sem ele, o sujeito não nasce; apenas se adapta.
Assim, o pai ou a mãe que castigam a mentira podem estar punindo, sem perceber, o nascimento da subjetividade.
12. A educação que sabe escutar o silêncio
A verdadeira educação emocional não é a que corrige, mas a que escuta o que não foi dito. Quando a criança mente, o adulto pode escolher dois caminhos: o da moral ou o da escuta. O primeiro transforma a mentira em culpa; o segundo, em palavra.
O educador ou o analista que compreende isso sabe que o essencial nunca está no conteúdo da fala, mas no seu endereço simbólico. Quem fala para se proteger, fala de amor. Quem mente, fala de medo. E quem escuta, permite que a verdade venha por vias oblíquas.
13. O símbolo do nariz e a metáfora da vergonha
O nariz de Pinóquio é o órgão do olfato — o sentido que mais se relaciona com o instinto e o desejo. Fazer o nariz crescer é, portanto, uma punição simbólica à pulsão: o desejo é exibido, envergonhado, ridicularizado. A mentira é punida com o aumento do corpo, como se o inconsciente precisasse ser exposto.
Mas o corpo da criança é também o campo onde o amor se escreve. Cada vez que ela sente vergonha de sua imaginação, algo do corpo se retrai — o olhar, o gesto, a fala. O corpo, então, aprende a ser verdadeiro demais, transparente demais, obediente demais. E é assim que nascem os adultos sem mistério: visíveis, corretos, mas sem alma.
14. A mentira e o nascimento da liberdade
Mentir é o primeiro ato de liberdade. É o instante em que a criança percebe que pode pensar diferente do outro. A mentira inaugura a distância simbólica entre o eu e o olhar que o julga. É nessa fenda que o sujeito se constitui.
O papel do adulto, portanto, não é cortar a mentira, mas interpretá-la simbolicamente. A criança mente porque deseja; e desejar é o contrário de mentir. O desejo é a verdade disfarçada — e a mentira, a forma infantil de preservar essa verdade.
15. A verdade é o que a palavra cria
No fim, Pinóquio só queria ser amado. Não pelo que dizia, mas pelo que sentia. E o amor verdadeiro, como a psicanálise ensina, não exige confissão — apenas presença.
Mentir é humano, mas mentir com ternura é infantil: é o modo como a criança pede para ser compreendida, não julgada. A mentira é o espelho da alma em processo de invenção.
Por isso, talvez devêssemos recontar a história de outro modo:
“Cada vez que Pinóquio mentia, seu nariz crescia não por castigo, mas porque ele precisava respirar. Precisava de ar para continuar sonhando.”
Que os adultos saibam, então, não apertar esse ar. Porque, quando o nariz cresce, não é o corpo que se alonga — é o desejo tentando sobreviver.
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