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Inveja e Psicanálise: Quando Amar é Sofrer com o Brilho do Outro

Atualizado: 30 de out.

“A inveja é o mais silencioso dos ódios, porque nasce de um amor que não pode ser dito.” — Deivede Eder Ferreira


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1. O afeto que não ousa dizer seu nome

Entre todos os afetos humanos, a inveja talvez seja o mais difícil de confessar. Ela não se mostra de frente: se disfarça de crítica, indiferença ou ironia. Enquanto o ciúme grita, a inveja sussurra. E o que ela sussurra é um segredo antigo: “eu admiro o que é seu, mas não suporto o quanto isso me falta”.

Freud observou, em Introdução ao Narcisismo (1914), que a autoimagem do sujeito — o chamado Ideal do Eu — é construída a partir de identificações com figuras amadas e admiradas. Quando uma dessas figuras encarna o que gostaríamos de ser, a admiração desperta o amor, mas também a dor de reconhecer nossa falta. Se essa dor não encontra lugar para ser dita, o amor é recalcado e retorna deformado: como ressentimento, competição, ou desvalorização do outro.

A inveja, portanto, não é apenas uma emoção “moralmente feia”; é uma forma de amor aprisionado — um amor que não conseguiu atravessar o espelho da comparação.



2. Freud e a ferida narcísica: quando o brilho do outro dói

Freud compreendia a inveja como derivada das feridas narcísicas — aquelas que nos lembram que não somos perfeitos, completos ou únicos. No texto Sobre o Narcisismo, ele afirma:

“O eu ideal exige de nós perfeição; o ideal do eu nos observa e julga, e nos sentimos diminuídos diante dele.” — Sigmund Freud, 1914

O brilho do outro atua como espelho e ferida. Quando alguém encarna o que gostaríamos de ser — mais amado, mais livre, mais desejado —, nosso ego sofre o impacto da comparação. E, incapaz de reconhecer o desejo que aquilo desperta, reage com depreciação. É mais fácil dizer “não é tudo isso” do que admitir: “eu gostaria de ser um pouco assim”.

Para Freud, a inveja tem parentesco direto com a ambivalência amor-ódio. O mesmo impulso que nos leva a amar também pode nos levar a odiar, se o amor ferir nosso orgulho. Por isso, a inveja é uma das manifestações mais sutis da luta entre Eros e Tânatos — entre o desejo de união e o impulso de destruição.


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3. Melanie Klein e o ataque ao objeto bom

Foi Melanie Klein quem deu à inveja sua forma mais precisa na teoria psicanalítica. Em Inveja e Gratidão (1957), ela afirma:

“A inveja é o sentimento de que o objeto possui algo bom e desejável, e o impulso de tirá-lo ou estragá-lo.” — Melanie Klein, 1957

Segundo Klein, a inveja surge nos primórdios da vida emocional. O bebê experimenta o seio materno como fonte de nutrição e prazer — mas também como algo que pertence à mãe e não a ele. Essa percepção da alteridade provoca uma frustração primária: o seio tem algo “bom demais”, e o bebê, sentindo-se dependente, deseja estragá-lo.

Assim nasce o mecanismo inconsciente da inveja: não basta desejar o que o outro tem; é preciso atacar o outro por tê-lo. É o impulso de destruir o bem no objeto para negar a própria carência.

Klein descreve o círculo vicioso: quanto mais inveja, menos gratidão; quanto menos gratidão, mais destruição. E, sem gratidão, não há amor possível. Pois amar é reconhecer o bem no outro — e desejar preservá-lo.



4. A inveja e a gratidão: duas forças opostas

A cura da inveja, para Klein, está na gratidão. Mas a gratidão, aqui, não é uma moral religiosa — é um ato psíquico de integração. Quando o sujeito aceita que o objeto amado é bom e separado de mim, algo novo acontece: a ambivalência deixa de ser destrutiva.

“A gratidão integra; a inveja divide.” — Melanie Klein

A gratidão reconhece o limite da posse: eu posso amar sem ter. A inveja, ao contrário, não suporta a distância e quer apagar o outro para não sentir a falta. Na linguagem simbólica, poderíamos dizer que a inveja odeia o amor — porque o amor exige reconhecer o que é do outro.



5. O recalque do amor: quando admirar é perigoso

O amor recalcado é o motor secreto da inveja. Na infância, aprendemos cedo que amar o que o outro tem pode ser perigoso: pode parecer submissão, fraqueza, ou perda de valor. Assim, o afeto é reprimido e retorna como ataque.

Freud descreve esse retorno em Luto e Melancolia (1917):

“Quando o amor ao objeto é ferido, o ódio assume o seu lugar.” — Sigmund Freud

O sujeito invejoso, portanto, ama, mas não suporta amar. Admirar implicaria reconhecer a falta — algo que o ego não tolera. Ele então ama às avessas, transformando o amor em negação. Por isso, a inveja é sempre acompanhada de uma espécie de dor muda: um afeto não vivido que permanece congelado.



6. Lacan: o olhar do Outro e o objeto de gozo

Lacan retoma o tema sob outra luz. Para ele, a inveja pertence ao campo do imaginário, onde o sujeito se mede pelo espelho do outro. No Seminário 10: A Angústia, ele define a inveja como uma reação à suposição de que o outro possui o objeto de gozo que me falta.

“A inveja é o desejo de que o outro perca o que tem de mais precioso.” — Jacques Lacan, Seminário X

O que invejamos, portanto, não é a coisa em si — mas o modo como o outro goza dela. Não é o corpo, a beleza, o sucesso — é o brilho de satisfação que imaginamos no olhar do outro. E, como esse brilho é impossível de possuir, nasce o desejo de apagá-lo.

A superação, em Lacan, passa pela aceitação da castração simbólica: a constatação de que ninguém é completo. O outro não tem o “segredo da vida”. Seu gozo não é mais pleno — apenas diferente. Esse reconhecimento dissolve a inveja e abre espaço para o desejo autêntico.



7. As máscaras da inveja no cotidiano

A inveja é um afeto disfarçado. Ela raramente se apresenta pelo nome. Em geral, aparece com outras máscaras:

  • Crítica constante: “Não é tudo isso”, “conheço gente melhor”.

  • Indiferença teatral: o falso desinteresse que oculta a dor de não ter.

  • Ressentimento moral: “Ele não merece tanto.”

  • Competição disfarçada: “Não invejo, só quero fazer igual — mas melhor.”

  • Generosidade compulsiva: dar demais para não sentir desejo.

Na clínica, essas formas aparecem como defesas contra o afeto da admiração. Admirar é arriscado, pois implica reconhecer a alteridade. O sujeito prefere neutralizar o outro — e assim protege o ego, mas empobrece a alma.



8. A inveja e o amor: duas faces da mesma ferida

A inveja e o amor compartilham a mesma origem: a experiência da falta. O amor aceita a falta e a transforma em vínculo; a inveja a nega e transforma em ataque. Em ambos, há o mesmo reconhecimento: o outro tem algo que me afeta profundamente.

Freud escreve em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921):

“A inveja e o ciúme são derivados do amor, mas quando este é reprimido, tornam-se os seus demônios.”

A inveja, então, não é um defeito moral, mas um sintoma da impossibilidade de amar sem medo. Ela mostra que o sujeito não suporta a dependência, a gratidão ou a admiração — elementos indispensáveis ao amor maduro.



9. A inveja no vínculo analítico

Na transferência, a inveja se manifesta com intensidade. O paciente pode invejar o saber, a serenidade ou a estabilidade do analista. Melanie Klein observou que esse movimento é inevitável — e até necessário —, pois a análise desperta o desejo de possuir o que o analista simboliza: o lugar do saber.

O trabalho clínico consiste em transformar o ataque em reconhecimento. Quando o paciente diz “você fala como se soubesse de tudo”, o analista pode devolver: “Parece que é difícil para você quando imagina que eu tenho algo que você não tem.” Assim, o afeto recalcado ganha nome: admiração ferida. E o amor pode reaparecer sob forma simbólica — não como rivalidade, mas como desejo de saber.



10. Inveja, cultura e redes sociais

A era digital multiplicou o espelho. As redes sociais são laboratórios do imaginário: vitrines de gozo, comparações incessantes, e um novo tipo de sofrimento psíquico — a inveja social. Vivemos cercados de imagens do que deveríamos ser: corpos, viagens, conquistas, aplausos. Cada “like” se torna uma medida narcísica, e cada sucesso alheio, um lembrete da nossa falta.

O olhar, que antes se limitava ao círculo íntimo, agora se tornou global. O que Freud chamou de “ferida narcísica” é hoje uma epidemia cotidiana. Mas o mecanismo inconsciente é o mesmo: o brilho do outro reativa o amor recalcado e o transforma em ressentimento.

A psicanálise, nesse cenário, oferece algo revolucionário: o direito de desejar sem competir. Deixar que o desejo do outro nos inspire — não nos diminua. Transformar a inveja em curiosidade pelo próprio inconsciente.



11. Caminhos de elaboração

Trabalhar a inveja não é eliminá-la, mas escutá-la. Toda inveja diz algo sobre o que desejo ser — e ainda não me permiti. Alguns caminhos psicanalíticos ajudam nesse processo:

  1. Reconhecer a dor da admiração: admitir o afeto antes do julgamento.

  2. Nomear a falta: compreender que o outro não é a causa da minha incompletude.

  3. Transformar a comparação em criação: desejar à própria maneira.

  4. Praticar a gratidão kleiniana: amar o objeto sem querer destruí-lo.

  5. Sustentar a falta com ternura: reconhecer-se humano, não perfeito.

Freud dizia que a saúde psíquica depende da capacidade de amar e trabalhar. Mas só é possível amar quando se aceita que o outro existe fora de mim — e que o bem dele não me ameaça, apenas me recorda o meu próprio desejo.



12. Ética da inveja: o direito de admirar

A inveja é inevitável. Ela acompanha toda relação humana, pois desejar é sempre desejar algo que pertence ao campo do outro. A questão, portanto, não é eliminar a inveja, mas transformá-la em reconhecimento. Deixar que o amor encontre caminho de palavra.

“A gratidão é o começo do amor verdadeiro.” — Melanie Klein

Quando posso dizer: “O que é seu me inspira, não me diminui”, algo se reorganiza no psiquismo. A inveja deixa de ser destrutiva e se converte em admiração generosa — o estágio mais alto da relação com o outro. É quando o amor deixa de competir e aprende a coexistir.



13. Conclusão: a inveja civilizada

Freud afirmava que o processo civilizatório é o resultado da sublimação dos impulsos destrutivos. A inveja, nesse sentido, também pode ser civilizada: transformada em força criativa, em motor de aprendizado e crescimento.

O sujeito maduro não deixa de invejar; apenas aprende a escutar o que a inveja quer dizer. Descobre que, no fundo, ela aponta para algo essencial: um desejo não vivido, uma potência ainda oculta.

A inveja, então, se torna bússola — um afeto que indica o caminho de onde ainda falta desejo. E, quando o amor recalcado volta a ser palavra, o outro deixa de ser ameaça e se torna espelho de transformação.


“O que é seu me revela o que ainda posso ser.” — Deivede Eder Ferreira


Leitura complementar

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Depoimento dos alunos

Marcelo da Costa

Psicanalista

Gostaria de expressar minha imensa gratidão à ABRAFP e à sua equipe excepcional, especialmente ao professor Diovane Avelino Souza, à psicanalista Andrea Machado Coutinho e à Ariana Morgado pelo seu dinamismo e dedicação.

A minha formação como psicanalista pela ABRAFP foi uma experiência enriquecedora que guardarei para sempre na memória. A instituição se destaca por ser comprometida em tempo integral com a formação dos seus alunos e oferecer um atendimento eficiente, respondendo às dúvidas e necessidades de forma ágil.

 

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Depoimento dos alunos

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Psicanalista

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