O Que Eu Sou Não Basta: Uma Leitura Psicanalítica da Infância e do Ideal de Perfeição
- Deivede Eder Ferreira

- 29 de out.
- 6 min de leitura
Atualizado: 30 de out.

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Há uma frase silenciosa que atravessa a infância contemporânea: “o que eu sou não basta”. Ela não é dita, mas habita os gestos, o olhar abaixado, o medo de errar, o corpo que se encolhe diante da expectativa do outro. Nas entrelinhas da vida escolar e familiar, ela ecoa — entre notas, comparações, diagnósticos e promessas de sucesso. A psicanálise, com sua escuta voltada ao indizível, nos convida a interrogar de onde nasce essa ferida tão precoce: a de sentir-se insuficiente antes mesmo de saber quem se é.
1. A infância sob o olhar que mede
Vivemos uma época em que a infância é cada vez mais observada e menos escutada. A criança já não brinca sob o risco do erro, mas sob o peso da correção. Tudo é medido, acompanhado, comparado: o tempo de fala, o tempo de leitura, o tempo da socialização. O olhar do adulto tornou-se avaliativo, não apenas cuidador. E esse olhar, que deveria acolher, converte-se em espelho da falta.
Freud, em O mal-estar na civilização, já havia alertado: a cultura exige do sujeito renúncias que custam caro à alma. Para que a vida social se mantenha, é preciso conter os impulsos, moldar o desejo, adiar a satisfação. Mas o preço dessa adaptação é a culpa — um sentimento que, quando se instala cedo demais, faz da infância uma espécie de ensaio para a frustração.
O ideal moderno de “criança bem adaptada” é a versão contemporânea desse sacrifício: — o aluno exemplar, o filho equilibrado, o pequeno cidadão que cumpre metas e expectativas. Por trás do elogio ao comportamento adequado, há um modo silencioso de dizer: “você será amado quando corresponder”. E a partir desse momento, o amor deixa de ser abrigo e passa a ser prêmio.
Aprofunde-se onde o pensamento encontra o inconsciente.
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2. O nascimento do ideal e a ferida do não ser suficiente
A psicanálise ensina que o sujeito não nasce pronto; ele se constitui a partir do olhar do Outro. É esse olhar que o inscreve no campo simbólico, que lhe dá nome, lugar e desejo. Mas quando o olhar do Outro está saturado de ideais — quando vê a criança como projeto de perfeição —, o sujeito é privado da liberdade de ser incompleto.
Freud chamou de Ideal do Eu essa instância que carrega as expectativas do Outro. É a voz que diz: “seja melhor”, “seja mais rápido”, “não chore”, “não erre”. Na medida em que o Ideal se torna mais exigente que o próprio desejo, a criança passa a viver sob o domínio de uma comparação constante. Ela não se mede pelo que é, mas pelo que falta para ser o que o outro quer.
É nesse ponto que nasce o sentimento de insuficiência estrutural. O “não basta” deixa de ser um enunciado circunstancial — “não fui bem na prova” — e torna-se uma posição subjetiva: “não sou bom o suficiente para ser amado”. A partir daí, cada gesto passa a ser uma tentativa de reparar essa ferida. A criança que tenta agradar, o adolescente que busca destaque, o adulto que se esgota para ser reconhecido — todos obedecem, de formas distintas, ao mesmo mandamento inconsciente: preciso ser o bastante para merecer o olhar do Outro.
3. A escola e o mal-estar da padronização
A escola, espaço que deveria ser de descobertas e simbolização, tornou-se um dos principais cenários do “não basta”. Ali, o desejo de aprender cede lugar à obrigação de performar. Os ritmos são uniformizados, as diferenças são vistas como falhas e o erro é punido antes de ser compreendido. A subjetividade é reduzida a rendimento.
A lógica avaliativa da educação moderna expressa o mesmo ideal civilizatório descrito por Freud: a tentativa de domesticar o inconsciente. Mas o inconsciente não aprende por repetição; ele aprende por desejo. E quando a escola ignora o desejo, ela produz o sintoma.
O aluno que “não aprende” pode estar dizendo, com o corpo e o silêncio: “não quero aprender o que me afasta de mim”. Por trás da aparente desatenção, pode haver resistência a um modelo de saber que não o inclui como sujeito.
Winnicott dizia que “é na brincadeira que a criança se mostra criativa e, portanto, saudável”. Quando o brincar desaparece do espaço de aprendizagem, a criança adoece de adaptação. Ela aprende a repetir o que esperam dela, não a pensar o que deseja. E é nesse ponto que o sintoma deixa de ser obstáculo e passa a ser mensagem: o sintoma é o modo como o inconsciente protesta contra a normalização.
4. O olhar do Outro e a fundação do Eu
Lacan nos lembra: “o desejo do homem é o desejo do Outro”. Isso significa que o sujeito se constitui a partir daquilo que o Outro deseja dele. Mas quando esse desejo é marcado pela exigência, o sujeito nasce cativo de um olhar que nunca se satisfaz.
A criança, diante de um Outro sempre insatisfeito, aprende a antecipar o que o outro quer — e, nesse movimento, abandona a própria espontaneidade. O “não basta” torna-se estrutura, uma forma de ser no mundo. Ela não brinca para se divertir, mas para ser elogiada; não desenha para se expressar, mas para agradar; não fala o que sente, mas o que espera que a façam amar.
O olhar que mede impede o olhar que reconhece. E quando o olhar não reconhece, o sujeito perde o chão simbólico que o sustenta. A criança precisa ser vista em sua totalidade, não apenas em seus desempenhos. Ser vista é existir. Não ser vista é desaparecer atrás do ideal.
5. O gozo do ideal e a cultura da comparação
Vivemos a era da comparação constante. Pais comparam filhos, professores comparam alunos, e as próprias crianças comparam suas vidas às imagens idealizadas que veem nas telas. O ideal de perfeição, que antes estava no olhar familiar, hoje é global. E quanto mais se persegue o ideal, mais distante ele se torna.
A psicanálise chama de gozo (jouissance) essa satisfação paradoxal que encontramos no sofrimento repetido. Há um prazer oculto em tentar ser o bastante — porque isso mantém o sujeito preso à esperança de finalmente corresponder. É o círculo vicioso da culpa: quanto mais falho, mais esforço; quanto mais esforço, mais culpa.
O “não basta” é, portanto, também uma forma de gozo — uma ferida que o sujeito lambe porque ela o faz sentir vivo, ainda que pela dor. Romper esse ciclo exige um olhar que não se alimente da falta, mas que reconheça o desejo.
6. O papel do adulto: entre o espelho e o abrigo
A função do adulto não é corrigir o desejo da criança, mas sustentá-lo. Isso não significa ausência de limites — significa presença simbólica. O limite saudável é aquele que dá forma ao desejo, não aquele que o destrói. O adulto que humaniza o olhar oferece à criança algo que o ideal não oferece: permissão para ser.
Ser é errar, é duvidar, é tentar e falhar — e ainda assim ser digno de amor. Quando o adulto reage ao erro com escuta, e não com julgamento, ele transforma o fracasso em experiência. Winnicott falava da importância de uma “mãe suficientemente boa” — não perfeita, mas real, capaz de falhar sem destruir o vínculo. Talvez precisemos também de professores e pais suficientemente humanos, que saibam que educar é mais do que ensinar: é reconhecer o outro como sujeito em construção.
A infância não precisa de perfeição; precisa de presença. Porque é na presença — e não na performance — que o sujeito se estrutura.
7. A cura pelo reconhecimento
A psicanálise não promete corrigir o “não basta”, mas compreendê-lo. Ao escutar o sintoma, ela devolve ao sujeito a possibilidade de nomear sua dor. E nomear é o primeiro passo para libertar-se dela.
Quando a criança é reconhecida como alguém que sente, pensa e deseja, o ideal perde o poder de tirania. Ela pode, finalmente, experimentar o prazer de existir sem precisar provar seu valor. E isso é o que há de mais revolucionário na psicanálise: transformar o sofrimento em linguagem, a falta em potência, e o erro em caminho.
8. Conclusão – O suficiente é humano
“O que eu sou não basta” é a frase que define uma geração de crianças expostas à pressa dos adultos e à lentidão do reconhecimento. Mas talvez o problema não esteja nelas — e sim no mundo que as observa sem ver.
A infância precisa de um olhar que devolva humanidade, não um espelho que exija perfeição. A psicanálise nos ensina que ser sujeito é aceitar a falta — e que é na falta, e não na completude, que nasce o desejo. Enquanto o adulto buscar moldar a criança à imagem do ideal, continuará produzindo sofrimento e afastando-a de si mesma. Mas quando aprender a escutar o que nela resiste — o erro, o atraso, o silêncio, a diferença —, encontrará ali a forma mais pura de verdade: a do sujeito que, mesmo imperfeito, ainda deseja.
E desejar, na linguagem da psicanálise, é o modo mais humano de existir.




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