O Perigo da Mãe Bem-Intencionada
- Deivede Eder Ferreira

- 27 de out.
- 8 min de leitura
Atualizado: 30 de out.

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Amor, limite e ambivalência no cuidado materno
Há algo de profundamente paradoxal no gesto materno que “faz tudo por amor” — e, ao mesmo tempo, se reencontra no modo como o amor pode sufocar, invadir, e transformar a criança em objeto de pertencimento. Neste ensaio, pretendo explorar o risco que se encarna na figura da «mãe bem-intencionada»: aquela que brinca com a criança, permite que ela se machuque, adota o discurso de que “criança machuca mesmo”, e logo após oferece um abraço afetuoso — mais que consolo, quase uma celebração simbólica da dor. Assim se instala um gozo silencioso, uma mistura de culpa, afeto, exigência e recusa de responsabilidade. Partirei da cena concreta, depois dramatizarei seu sentido psicanalítico: ambivalência afetiva, gozo materno, recusa do limite e o papel do abraço que torna-se “gozo sintomático”. Por fim, articularei algumas pistas de intervenção — para mães, analistas, pais — que visam tornar esse amor “menos perigoso” e mais vivificante para a criança-sujeito.
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1. A cena: brincar, machucar, abraçar
Imagine a seguinte cena: uma mãe convida a criança para brincar — empurra-a no balanço, joga-a para cima, desafia-a a “tentar mais alto”. A criança cai, rasga um joelho, chora. A mãe solta: “Ah, infância é assim, criança machuca mesmo”; e, nesse instante, dá um grande abraço, acaricia, veste o machucado com cuidado. A criança sente a dor, sente o consolo, sente a ternura — e a mãe sente que cumpriu sua função, ama a criança, está ali. E mais: sente-se aliviada, porque transformou um acidente em afeto. Mas há algo oculto nessa cena. Ao abraçar logo após o machucar-brincar, a mãe fecha o circuito. Não há tempo para a criança nomear o que sentiu, para a mãe escutar a própria frustração ou medo — tudo é rapidamente revertido em abraço afetuoso, em “está tudo bem”. O que se elimina é o limite simbólico: não se falou de cuidado, de risco, de susto, de reparação real — falou-se de amor. E o amor, nessa hipótese, torna-se máscara para aquilo que permanece não dito. A justificativa “criança machuca mesmo” funciona como legitimação da queda, do excesso de estímulo, da prova de coragem — e ao mesmo tempo como recusa de implicar-se no que provocou. No abraço subsequente, há uma dupla função: consolar a criança e auto-consolar a mãe. Pois foi permitida ou impulsionada a queda — e o abraço fecha a fissura, devolve a harmonia, reinstala a mãe no polo do amor absoluto. É esse ciclo — brincar/excesso → queda/lesão → justificativa → abraço-gozo — que quero chamar de gozo sintomático. A criança nem sempre terá lugar para perceber que foi agenciada como objeto desse ciclo. E a mãe — mesmo bem-intencionada — poderá estar repetindo um padrão em que cuidado e gozo se confundem.
2. Ambivalência afetiva: amor e hostilidade lado a lado
A psicanálise nos recorda que o amor materno não é puro — ele convive com hostilidade, ambivalência, inveja, excesso de expectativa. Sigmund Freud falava da coexistência do amor e ódio para o mesmo objeto. E essa mãe “bem-intencionada” está viva nessa ambivalência. Quer amar; quer se sentir boa. Mas ao mesmo tempo, quer o elogio, quer o reconhecimento, quer que a criança provê-la de sentido. No momento em que ela brinca, empurra, incita — há uma forma de desafio: “vamos ver o quanto você aguenta”, “vamos ver se você é forte”. A queda, então, aparece não apenas como risco, mas como prova. A mãe envia a mensagem: “eu te desafio porque confio em você” — mas, por trás dessa mensagem, pode estar o desejo de ver a criança dependente, vulnerável, ainda minha. O abraço logo depois reitera isso: “Você sofreu, e eu vim para ti. Eu sou teu abrigo.” Nesse arranjo, a criança aprende que a queda (ou o machucar-se) é aceitável, até necessária, contanto que o cuidado materno venha logo em seguida. O limiar entre brincar livremente e ser responsabilizado pelo risco não é marcado. O excesso não é chamado pelo nome; a ferida não é tema de conversa. Em vez disso, há reconciliação rápida, apagamento da frustração ou da dor. A ambivalência — a hostilidade (ou o desafio) + o amor — permanece invisível, porque ela se traduz em conteúdo simbólico não nomeado. Assim, a mãe “bem-intencionada” age como se fosse só amor, mas está, inconscientemente, usando o amor para tapar fissuras, satisfazer seu próprio desejo de ser boa — e dar à criança uma lição que mistura autoridade e carinha. A ambivalência torna-se sintoma: a criança pode aprender que a dor, o risco e o cuidado estão sempre misturados, e que o cuidado é a forma de apagar o risco — não de lidar com ele.
3. O abraço-gozo e o gozo materno
Quando a mãe abraça depois da queda, ela está realizando algo que ultrapassa o simples consolo: está fixando o momento como um rito. O rito da queda e do abraço. E o que o rito faz? Ele sela uma narrativa: “Você caiu, eu estava aqui. Você sofre, eu te salvo.” Esse enredo tem o valor simbólico de afirmar a função materna, mas também tem o valor pulsional de afirmar um desejo: o desejo materno de “dar tudo”, de ser indispensável, de não deixar faltar. Jacques Lacan dizia que o desejo da mãe em relação à criança muitas vezes ultrapassa a função de mãe e toca a função de “objeto de gozo”. A mãe “bem-intencionada” pode, sem querer, organizar sua ação para que a criança responda ao seu desejo — não como sujeito, mas como objeto de seu cuidado. O abraço então se torna mais que afeto: torna-se intercambio de gozo. A criança sente-se amada, mas ao custo de entrar nessa dinâmica onde a dor – ainda que leve — faz parte do rito. No abraço, a mãe também experimenta seu gozo: o de cumprir seu papel, o de amortecer seu próprio medo de falhar, o de converter a queda em prova de amor. O que, entretanto, escapa à vista — ou à fala — é que esse gesto tem uma dimensão simbólica: a queda foi permitida, o machucado foi instrumentalizado para o abraço. A criança pode internalizar que a dor (ou o susto) é algo que a mãe pode resolver — e que daí decorre que a vulnerabilidade torna-se meio de obtenção de afeto. Essa dinâmica é perigosa porque prende a criança em duas lições ao mesmo tempo: “caia, para que eu te salve” e “eu te salvo, então você me pertence”. O limite — entre o brincar e o jogo seguro, entre autonomia e dependência — fica borrado. O que deveria ter sido ferida simbólica, consequente de um limite, vira momento de fusão afetiva. A criança perde a oportunidade de simbolizar a queda — de ver que há um fora de si que provoca dor — e entra no circuito de reconciliação imediata com a mãe.
4. A recusa do limite: amor sem castração
Um dos aspectos mais críticos nessa situação é a recusa do limite simbólico. A mãe, ao justificar “criança machuca mesmo”, está dizendo: “é normal, não há culpa minha”. Em parte, essa frase parece proteger a criança — mas, em outra parte, protege a mãe de se responsabilizar. O limite — que é a marca da castração simbólica, da falha, da frustração — não é colocado em cena. O resultado é que a criança não vivencia a queda como algo significativo; ela vive a queda como um brinde ao abraço. Em termos clínicos, aprendemos que o pai ou a mãe têm uma função de dizer “não”, de colocar fronteira, de garantir que o sujeito encontre seu desejo fora da fusão. Aqui, o “não” está ausente: ou mais precisamente, está presente apenas como “você machucou, mas tudo bem, eu te abraço”. A mãe quer tudo ao mesmo tempo — a aventura, a brincadeira, a segurança, a salvação. E isso impede a criança de aprender sobre o risco, sobre o susto, sobre o próprio desejo de evitar a dor. Em vez disso, a criança pode internalizar que queda = abraço = reconciliação. Ela cresce acreditando que a vulnerabilidade é meio de afeto, que o amor materno é inteiro, que não há falha ou ausência — e isso pode dificultar a construção de seu próprio sujeito desejante, porque ela permanece na órbita da mãe. O amor, então, em vez de fomentar autonomia, sustenta dependência. E tudo “bem-intencionado”.
5. A transformação possível: amor que delimita
Como poderão ver pais, mães, analistas e educadores, o perigo não reside no afeto materno — mas no modo como o afeto se articula com o limite, com a lacuna, com o simbólico. A mãe que ama com boas intenções precisa de cuidado consigo mesma: de diferenciar “meu prazer em te salvar” de “teu lugar de sujeito que se salva de si mesmo”. Algumas pistas práticas e conceituais:
Nomear a dor: quando a criança se machuca, permitamos que ela sinta o susto, diga o que sentiu, identifique o joelho que rasgou, o choro que brotou. Não pulemos essa etapa com “tudo bem, amor”.
Perguntar à mãe: o que ela sentiu ao ver a criança cair? O que a queda mexeu em você de antiga culpa, de desejo de perfeição? Trazer essa atenção para o simbólico diminui o gozo não percebido.
Separar brincadeira e risco: brincar é bom, desafiar faz parte do crescimento; mas é responsabilidade do cuidador calibrar o risco, explicar ao que se propõe o desafio, dizer “olha, agora eu te empurro, segura-se forte”.
Abraço com escuta: o abraço pós-queda pode ser acompanhado de uma escuta verdadeira: “você ficou meio assustada, né? Vamos conversar sobre isso”. Assim transforma-se o abraço em laço, não em ritual de reconciliação automática.
Limite simbólico como presente de amor: dizer “não agora esse empurrão” ou “vamos mais devagar” também é amor. Anunciar que a mãe não pode evitar toda dor, mas pode acompanhar a criança no susto, é transmitir autonomia.
6. Final: a mãe, a criança e o desejo
Voltemos à cena: a mãe brinca, a criança se machuca, a mãe justifica, abraça. Vimos como esse gesto aparentemente inocente e afetuoso esconde uma trama simbólica — a ambivalência, o gozo materno, a recusa de limite, a criança tornado meio de afeto. O perigo não está na mãe “errada”, mas na mãe bem-intencionada que acredita que o carinho basta, que o abraço resolve, que a queda pode ser convertida em afeto sem trânsito simbólico. Na psicanálise aprendemos que o sujeito nasce no corte, no “fora do um”, na falta. A mãe amorosa não impede essa falta — ela a suporta. E, ao suportá-la, ela permite que a criança se torne sujeito — desejante, falível, separado. Quando a mãe não suporta a falta e a corrige com abrigo imediato, a criança pode permanecer em laço de dependência. Convido a cada mãe, cada cuidadora, a refletir: qual é o meu desejo quando abraço a criança após a queda? Quero apenas consolar? Quero eliminar o susto? Ou quero que ela se torne meu espelho de boa mãe? E convido a cada analista ou profissional da saúde mental a cuidar desse tipo de relação entre mãe e filho, pois ela revela muito sobre a estrutura do sujeito em formação. Para você, leitor/educador/analista que se depara com esse tipo de situação — e talvez a própria mãe que se reconhece nessa figura — há boas notícias: o amor não precisa ser menos, apenas diferente. Menos reparador imediato, mais escutador presente. Menos fusional, mais simbólico. Menos gozo, mais desejo do sujeito. E se desejo um espaço de leitura que aprofunde essas temáticas — desejo que possa alcançar tanto a mãe-cuidadora quanto o analista em formação — convido-o a conhecer os livros de Deivede Eder Ferreira através do link: Amazon.com.br: Deivede Ferreira: livros, biografia, última atualização




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