O Espiral do Inconsciente: O Buraco Negro e o Retorno do Sentido
- Deivede Eder Ferreira

- 15 de out.
- 6 min de leitura
"Entre o colapso das estrelas e o silêncio do inconsciente, o universo e o homem compartilham a mesma espiral: a forma invisível do que insiste em nascer do abismo."
Deivede Eder Ferreira

Deivede Eder Ferreira é psicanalista e escritor. Conheça suas obras e mergulhe em reflexões profundas sobre alma, desejo e consciência: veja seus livros na Amazon.
I. O Universo e o Homem: Duas Formas do Mesmo Mistério
O universo e o homem partilham um segredo: ambos são complexos demais para serem compreendidos de fora. O cosmos se expande em direções que desafiam nossa imaginação; o inconsciente se move em profundezas que desafiam nossa razão. Ambos contêm forças invisíveis que ordenam o caos e, paradoxalmente, dele se alimentam. Entre as galáxias há silêncio; dentro de nós, há silêncio também — e nesse silêncio pulsa algo vivo, que organiza o sentido e o desejo.
A ciência e a psicanálise, cada uma a seu modo, buscam decifrar esse enigma. Os astrônomos observam o espaço, tentando entender as forças que moldam as galáxias. Os psicanalistas escutam o sujeito, tentando compreender o que estrutura o sofrimento e o desejo. Ambos olham para um centro invisível — o buraco negro e o inconsciente — e descobrem que é o invisível que dá forma ao real.
No coração da nossa galáxia, a Via Láctea, há um ponto de gravidade absoluta: Sagittarius A*, um buraco negro supermassivo com cerca de 4 milhões de massas solares. Nada escapa de seu horizonte de eventos, nem mesmo a luz. E, no entanto, é em torno dele que o núcleo galáctico se organiza. Do mesmo modo, há em nós uma região psíquica onde o sentido colapsa e, ainda assim, é ali que tudo começa a girar. Esse centro obscuro, inacessível e denso, é o inconsciente — o Sagittarius A* da alma.
II. O Buraco Negro e o Inconsciente: Dois Centros Invisíveis
O buraco negro é o ponto onde o espaço e o tempo se curvam ao extremo; o inconsciente é o ponto onde a linguagem e a consciência se dobram diante do desejo. Ambos são regiões-limite, onde a visibilidade se desfaz e a compreensão exige outra lógica.
Para a física relativística, o buraco negro é o paradoxo do espaço-tempo: quanto mais próximo de seu centro, mais o tempo desacelera, até parecer deter-se. Para a psicanálise, o inconsciente é o paradoxo do desejo: quanto mais o sujeito tenta dominar o próprio sintoma, mais ele se vê aprisionado por ele.
Em torno do buraco negro, há um disco de acreção — gases e poeira aquecidos a milhões de graus, que giram em velocidade extrema, emitindo radiação intensa antes de serem tragados. Algo semelhante ocorre em nós: pensamentos e afetos orbitam em torno de um núcleo de experiências recalcadas. A consciência, como uma estrela periférica, brilha, mas não compreende o que a move. O sujeito acredita governar a si mesmo, mas orbita o inconsciente, assim como os sistemas estelares orbitam Sagittarius A*.
Freud chamava isso de determinismo psíquico: nada no humano é totalmente casual. Lacan, ao reinterpretá-lo, mostrou que o inconsciente não é um depósito de lembranças esquecidas, mas um campo de linguagem, um espaço curvado de sentido. Assim como a matéria se dobra diante da gravidade, o discurso se curva diante do recalcamento. Cada palavra dita é desviada por essa força simbólica; cada ato falho é o eco de um núcleo que insiste em se fazer ouvir.
III. A Espiral Galáctica e o Movimento da Psique
As galáxias não são círculos imóveis: são espirais dinâmicas, sustentadas por ondas de densidade que comprimem o gás interestelar e dão origem a novas estrelas. O espiral é o símbolo mais antigo da vida — aparece nas conchas, nas correntes de água, nas plantas, nas danças e, sobretudo, no céu. É o movimento que retorna, mas não exatamente ao mesmo ponto. Cada volta é repetição e diferença. Essa é também a estrutura do inconsciente.
Freud dizia que “onde há recalcamento, haverá retorno”. Mas esse retorno é espiralado. O sintoma retorna, sim, mas a cada fala, a cada escuta, ele retorna um pouco diferente, deslocado, transformado. É assim que o sujeito se elabora: voltando sempre ao mesmo ponto, mas com outro olhar, outra consciência, outro tempo.
O espiral é a forma visível da transformação invisível. Enquanto o círculo aprisiona, o espiral liberta. Ele é o círculo que aprendeu a crescer — a repetição que aprendeu a pensar. Na natureza, o espiral garante a expansão da energia sem ruptura; na psique, garante a possibilidade de reelaboração sem negação.
Assim como o universo repete padrões cósmicos em escalas crescentes, o sujeito repete afetos e lembranças até que o movimento se torne elaboração. Cada volta traz um novo sentido, cada repetição abre uma fenda simbólica.
IV. O Sintoma como Gravidade Psíquica
O sintoma é o nosso pequeno buraco negro. Ele concentra o que foi recalcado — dor, desejo e gozo — e cria um campo de atração que deforma o tempo da vida. O sujeito gira em torno de suas repetições, acreditando estar preso, quando na verdade está sendo transformado pelo próprio movimento.
A psicanálise não busca eliminar esse giro, mas compreendê-lo. Quando o sujeito fala e escuta a si mesmo, começa a perceber o campo de forças que o move. E o que antes era buraco se revela fonte: o inconsciente se torna energia simbólica, e a linguagem passa a funcionar como gravidade interior.
Assim como os astrônomos não veem o buraco negro diretamente, mas pelos efeitos de sua gravidade, o analista percebe o inconsciente pelos efeitos do discurso: lapsos, sonhos, atos falhos, repetições. São distorções que denunciam a presença de um centro invisível — uma singularidade psíquica.
V. O Espiral da Reelaboração: Do Caos ao Sentido
A elaboração psíquica é um movimento espiralado. O sujeito retorna às mesmas narrativas e às mesmas dores, mas a cada volta há uma mínima diferença — e é essa diferença que gera simbolização. Freud chamou esse processo de Durcharbeitung, o “trabalho de elaboração”: um giro lento e contínuo em torno do trauma, até que o círculo se torne espiral.
O que antes era pura repetição torna-se ritmo; o que antes era compulsão torna-se compreensão. Assim como as estrelas orbitam o núcleo galáctico em trajetórias estáveis, o sujeito, ao elaborar, estabiliza seu próprio campo interno. A diferença é que, no universo psíquico, a estabilidade é viva — é feita de movimento e linguagem.
O inconsciente não desaparece; ele se transforma em centro simbólico de equilíbrio. A fala, então, não é fuga, mas órbita: um modo de permanecer girando sem ser tragado.
VI. O Espiral como Forma do Saber e do Ser
O espiral é a estrutura do conhecimento. Ninguém aprende de uma vez; todo saber é retorno. O aprendizado humano — seja científico, afetivo ou espiritual — é sempre a reaproximação de um mesmo núcleo, visto de outra perspectiva.
Na física, o espiral expressa estabilidade dinâmica: o que gira e se expande, sobrevive. Na psicanálise, o espiral expressa subjetivação: o que repete e se transforma, vive.
O sujeito que fala sobre si repete, mas essa repetição cria espaço para o novo. Não há elaboração sem retorno; não há expansão da consciência sem reencontro com o inconsciente. Assim como o universo se expande e as galáxias giram dentro dele, o sujeito se transforma sem deixar de ser quem é.
Por isso, a análise não é linha reta — é órbita com sentido. Cada volta é um pouco mais distante da dor e um pouco mais próxima do simbolismo que a sustenta.
VII. O Cosmos Dentro do Homem
A psicanálise e a cosmologia se encontram numa verdade essencial: tudo o que existe, existe em relação. Nada é isolado, nada é estático. O universo e o inconsciente são campos abertos, sistemas que se auto-organizam em torno de forças invisíveis.
O sujeito é um cosmos em miniatura. Seu inconsciente obedece às mesmas leis fundamentais que regem as galáxias:
Gravitação, como o desejo que atrai o sentido;
Entropia, como a resistência à mudança;
Expansão, como a pulsão de vida que o empurra à simbolização.
E, como o universo, o sujeito também tem um fundo escuro. Mas esse fundo não é ausência — é potência. O que o homem teme como vazio é, na verdade, o espaço fértil de onde nascem as estrelas da linguagem.
VIII. O Vazio que Cria
O buraco negro e o inconsciente têm em comum o fato de que produzem forma a partir do vazio. No universo, o material tragado por Sagittarius A* aquece-se e emite radiação antes de desaparecer, alimentando novos processos cósmicos. Na psique, o que é recalcado retorna como sonho, sintoma, criação. Nada se perde — apenas muda de expressão.
A cura, então, não é o desaparecimento do sintoma, mas sua transfiguração simbólica. A dor, quando dita, se torna matéria de criação; a repetição, quando compreendida, se transforma em consciência. O inconsciente, quando escutado, revela-se não como abismo, mas como origem.
IX. Conclusão — O Espiral do Ser
O universo gira em torno de vazios cheios de força; o homem também. No centro da Via Láctea há um buraco negro — no centro da alma, o inconsciente. Ambos invisíveis, ambos necessários. É do invisível que nasce o movimento, é do silêncio que nasce o sentido.
O espiral é a ponte entre os dois: ele traduz o modo como o cosmos e o sujeito se expandem — pela repetição que pensa, pela volta que transforma.
A vida é um espiral de elaborações: cada dor que retorna traz consigo uma estrela nova.
O homem é o universo que se escuta.
E o inconsciente, esse buraco negro de desejo, é o espaço onde a luz da fala se curva — para, em seguida, renascer.




Comentários