O Pai Sob Suspeita: O Inconsciente Institucional e o Preconceito de Gênero no Cuidado Infantil
- Deivede Eder Ferreira

- 17 de out.
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Atualizado: 17 de out.

1. Introdução – Quando o Relógio se Torna Símbolo
O pai chega pontualmente com os filhos para a visita assistida. Cumpre o horário determinado, traz as crianças bem vestidas, tranquilas, e as entrega no ambiente preparado para que a mãe possa vê-las. A rotina, que deveria ser apenas uma formalidade de cuidado e cumprimento judicial, transforma-se em uma cena de acusação sutil.
Antes mesmo de olhar o relógio ou consultar a ficha, a assistente social repete diversas vezes que “eles estão atrasados”. O pai tenta manter a serenidade, mas o tom reitera uma suspeita que parece anterior a qualquer fato: uma dúvida sobre sua capacidade de cumprir o que se espera de um cuidador. Somente depois, com o registro em mãos, a profissional reconhece o engano — havia confundido o horário.
Esse episódio, banal à primeira vista, expõe algo que a psicanálise sempre procurou escutar: o inconsciente que se manifesta no detalhe, o sintoma institucional que emerge onde a racionalidade administrativa acredita operar. O erro de horário, repetido e depois corrigido, não é apenas um equívoco cognitivo. É um ato falho institucional — expressão de um desejo inconsciente que atravessa o corpo simbólico das instituições, especialmente quando o sujeito que cuida é um homem.
2. O Ato Falho e o Desejo Inconsciente da Instituição
Freud (1901), em A Psicopatologia da Vida Cotidiana, mostrou que os lapsos, esquecimentos e enganos não são acasos: são formas de realização disfarçada de um desejo. O erro não apaga o sujeito; pelo contrário, o revela. No caso da assistente social, a confusão de horário e a insistência na acusação mostram a emergência de um conteúdo inconsciente — a necessidade de restaurar uma ordem simbólica ameaçada.
O pai cuidador, figura ainda minoritária no imaginário social, desestabiliza o lugar tradicional da mãe como guardiã natural do afeto. Sua presença no espaço institucional reabre a pergunta sobre quem detém a legitimidade do cuidado. O erro da profissional, portanto, não é neutro: ele funciona como um mecanismo de defesa da instituição, que tenta restaurar a normalidade perdida pela simples presença de um homem no lugar de cuidador.
Lacan (1959-60), em A Ética da Psicanálise, afirma que o desejo não é individual, mas estruturado no campo do Outro. A instituição — como sujeito coletivo — também deseja. Seu desejo é conservar o que a estrutura cultural nomeou como “normal”. Assim, o ato falho da assistente social revela o desejo inconsciente da instituição de manter o pai na posição de exceção: ele pode ser protetor, provedor, juiz ou visitante, mas não aquele que conduz o cuidado com estabilidade.
O “erro” é, portanto, uma forma simbólica de resistência: o inconsciente institucional tenta restabelecer o eixo falocêntrico tradicional, onde o homem é o sujeito do poder, mas não da ternura.
3. O Pai que Cuida: Uma Ruptura no Imaginário Social
Historicamente, a modernidade naturalizou a associação entre maternidade e cuidado. Badinter (1985) mostrou que o “instinto materno” é uma construção cultural recente, não um dado biológico. Se o amor materno foi um “amor conquistado”, o cuidado paterno é, hoje, um amor suspeito — constantemente vigiado e posto à prova.
O homem que chega com os filhos para uma visita assistida encarna essa ambiguidade: ele rompe o modelo arcaico, mas ainda carrega a marca da desconfiança. A instituição, moldada por séculos de divisão simbólica entre o masculino e o feminino, estranha o homem cuidador. E, como toda estrutura que se vê ameaçada, reage com defesa.
Pierre Bourdieu (1999) chama de violência simbólica a forma de dominação que se perpetua através da crença coletiva. O olhar institucional, ainda que polido, carrega essa violência: o pai é tratado como alguém que “faz o papel da mãe” ou como um substituto provisório, nunca como sujeito legítimo do cuidado.
A psicanálise, por sua vez, não vê no pai cuidador uma anomalia, mas uma reconfiguração da função paterna. A função do pai — diferenciar, simbolizar, introduzir o limite — pode coexistir com o gesto de nutrir, proteger e acolher. Quando isso ocorre, o sujeito masculino toca uma dimensão do amor que Freud (1923) relacionava à sublimação: o deslocamento da pulsão de posse para o campo da criação e da ética.
O pai que cuida subverte o discurso do patriarcado e da maternidade idealizada. Ele encarna o “terceiro excluído” do imaginário social — aquele que mostra que o cuidado não tem gênero, mas desejo.
4. O Gozo da Repreensão e o Exercício do Poder
A insistência da assistente social em afirmar o atraso, mesmo diante de evidências contrárias, pode ser lida como uma forma de gozo. Lacan (1972-73), em Mais, Ainda, descreve o gozo como aquilo que ultrapassa o prazer — um excesso, uma satisfação na própria repetição. A repetição da frase “vocês estão atrasados” funciona como descarga dessa satisfação inconsciente.
O poder institucional goza ao reafirmar a hierarquia simbólica: o pai é posicionado como aquele que deve ser corrigido, enquanto a instituição preserva o papel de saber. Esse gozo da repreensão mascara a angústia que surge quando o Outro (a mulher, a mãe, ou a própria instituição) se depara com um homem que cuida — algo que desafia o equilíbrio simbólico entre poder e sensibilidade.
Maria Rita Kehl (2008) explica que, nas sociedades modernas, o feminino foi deslocado do campo da fragilidade para o campo da suspeita. A mulher que não é mãe suficiente é julgada; o homem que cuida demais é desconfiado. Ambos sofrem sob a mesma estrutura normativa que define o que é “normal” amar. Assim, o gozo da repreensão revela-se como o prazer inconsciente de manter a ordem simbólica através da culpa.
O gesto de corrigir o pai cuidador é, portanto, menos sobre tempo e mais sobre lugar: “se chegou, chegou errado; se cuidou, cuidou demais”. O erro de horário apenas dramatiza um conflito muito mais profundo — o da sociedade com a sua própria redefinição dos papéis de gênero.
5. O Pai Real: Ética, Resistência e o Silêncio como Ato
O pai, diante da acusação, permanece em silêncio. Não por submissão, mas por ética. Freud (1925) lembra que o silêncio pode ser o limite onde o sujeito se recusa a responder ao chamado da pulsão de vingança. Esse silêncio ético, nesse caso, é uma forma de resistência simbólica: ele não devolve a violência simbólica que recebe, mas a transforma em presença serena.
Na psicanálise, a resistência não é apenas negação; é ato ético. Lacan (1959-60) situa o ato ético no ponto em que o sujeito não cede de seu desejo. O pai que continua a cumprir suas obrigações, a cuidar e a manter a estabilidade emocional das crianças, mesmo sob a desconfiança institucional, atua como sujeito ético — aquele que sustenta o desejo de cuidar apesar do olhar do Outro.
Esse gesto silencioso reconfigura o lugar do pai no imaginário contemporâneo. Ele não se afirma pela autoridade, mas pela consistência afetiva. O cuidado, aqui, torna-se a nova lei — não uma lei do poder, mas da escuta.
Quando a instituição o acusa, o pai não se defende com palavras, mas com presença. É o “pai real” — aquele que, segundo Lacan, escapa à função imaginária e se enraíza no ato. Nesse sentido, seu silêncio é o verdadeiro discurso: uma fala sem som que denuncia o ruído das estruturas sociais que ainda não suportam o cuidado masculino.
6. O Inconsciente da Sociedade Ainda é Machista
Mesmo em tempos de discursos igualitários, o inconsciente da sociedade permanece machista. Foucault (1987) mostrou que o poder se infiltra nas micropráticas, nos olhares e nos gestos cotidianos — é o que ele chama de microfísica do poder. O episódio da visita assistida ilustra essa lógica: uma simples confusão de horário torna-se o palco onde o inconsciente social repete sua hierarquia.
A desconfiança sobre o pai cuidador é uma forma contemporânea de controle: o homem é vigiado não porque é perigoso, mas porque ousa cuidar. O cuidado, no entanto, é o novo campo político do século XXI — onde as identidades se dissolvem e os lugares simbólicos se misturam.
O episódio mostra que o preconceito de gênero não se manifesta apenas na linguagem, mas na temporalidade institucional: o tempo do homem é sempre o “tempo suspeito”, o tempo que precisa ser corrigido. O relógio, símbolo da objetividade moderna, torna-se o novo instrumento do inconsciente moralista.
Enquanto a cultura não aceitar plenamente o homem que cuida sem culpa e a mulher que deseja sem punição, as instituições continuarão a produzir atos falhos. O erro da assistente social, ao fim, é o erro de toda uma civilização que ainda não aprendeu a escutar o amor fora dos papéis.
7. Conclusão – Quando o Cuidado é o Novo Nome da Lei
O episódio da visita assistida não é apenas um retrato de burocracia emocional; é um espelho do inconsciente coletivo. O pai pontual, o erro da profissional, o silêncio que se segue — tudo isso forma uma cena paradigmática da transição civilizatória que vivemos.
O pai que cuida não é exceção, mas sinal do novo laço social: um laço baseado na partilha e não na dominação. Seu gesto ético revela o que Freud chamava de sublimação — a transformação da pulsão em ato criador. O cuidado, quando sustentado pela ética do desejo, é o verdadeiro contraponto à barbárie.
As instituições, contudo, ainda operam sob os resíduos do patriarcado: desejam o pai forte, mas não o pai sensível; toleram a mãe amorosa, mas desconfiam da mulher que deseja. É nesse entre-lugar que o inconsciente institucional se manifesta — no lapso, no erro, na fala repetida, no olhar que julga.
Revelar esses sintomas é tarefa ética da psicanálise: escutar o que a sociedade não sabe que diz. Quando o pai chega com os filhos para a visita assistida e é acusado de atraso, o que está em jogo não é o tempo do relógio, mas o tempo do inconsciente — aquele que ainda insiste em manter o homem longe do cuidado e a mulher prisioneira do amor idealizado.
O dia em que o relógio institucional marcar a hora exata em que um pai e uma mãe puderem amar sem culpa, talvez o inconsciente social — enfim — se dê conta de que o cuidado é o novo nome da lei.
Bibliografia:
BADINTER, Elisabeth. Um Amor Conquistado: o Mito do Amor Materno. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.
FREUD, Sigmund. A Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901). In: ______. Obras Completas, vol. VI. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
FREUD, Sigmund. O Ego e o Id (1923). In: ______. Obras Completas, vol. XIX. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do Feminino: a Mulher Freudiana na Passagem para a Modernidade. São Paulo: Boitempo, 2008.
KEHL, Maria Rita. O Tempo e o Cão: a Atualidade das Depressões. São Paulo: Boitempo, 2009.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 7: A Ética da Psicanálise (1959-1960). Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise (1964). Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: Mais, Ainda (1972-1973). Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.




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