Psicanálise do Brincar: Quando o Adulto Sufoca o Brincar da Criança
- Deivede Eder Ferreira

- 28 de out.
- 7 min de leitura
Atualizado: 30 de out.

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Uma criança olha para uma poça de neve e sorri. Um adulto, ao lado, corrige a cena: “Não é neve, é lama.” Nesse pequeno gesto — quase invisível — o mundo simbólico se contrai. O brincar, que antes era ponte entre o real e o imaginário, torna-se vítima da literalidade adulta.
O espaço potencial do brincar
Donald Winnicott, um dos grandes nomes da psicanálise inglesa, dizia que o brincar é o espaço potencial entre a criança e o mundo. Não se trata apenas de uma atividade lúdica, mas do terreno onde o sujeito começa a existir como sujeito — aquele que cria, imagina, representa e, portanto, transita entre o real e o simbólico.
No brincar, a criança não está apenas “fingindo”: ela está criando o mundo de novo. A poça não é apenas neve ou lama; é um espelho onde o imaginário reflete o desejo. Quando o adulto interrompe esse gesto criador — substituindo o simbólico pela correção — ele não apenas corrige uma palavra: ele corrige o desejo.
Winnicott dizia que é no brincar que o indivíduo “se torna criativo e descobre o eu”. Freud, antes dele, afirmara que a brincadeira infantil é o lugar onde o inconsciente se manifesta de forma mais livre, onde a criança domina a realidade através da fantasia.
Brincar é o modo como a criança diz: “eu existo, mesmo que o mundo ainda não me entenda”.
Mas o adulto, com sua urgência por realismo e controle, costuma responder: “não existe isso que você está dizendo”. E nesse momento — quase sempre com boas intenções — o adulto apaga o sujeito que nascia.
Aprofunde-se onde o pensamento encontra o inconsciente.
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A colonização do imaginário pela razão adulta
O olhar adulto, em sua ânsia por ensinar o “mundo como ele é”, frequentemente coloniza o imaginário da criança. Há uma obsessão moderna pelo “realismo”, como se a fidelidade à verdade factual fosse superior à experiência simbólica.
Quando o adulto diz “não é neve, é lama”, ele acredita estar ensinando o filho a ser mais lúcido, mais adaptado à realidade. No entanto, o que ele faz é interromper o processo simbólico, transformando o brincar em um campo de obediência.
A psicanálise entende que a fantasia é a estrutura do desejo. Sem ela, o sujeito perde o eixo entre o que sente e o que pode simbolizar. O adulto que corrige demais, que exige precisão, acaba matando a poesia da infância — e com ela, a possibilidade de o desejo se traduzir em palavras, gestos e criações.
Klein nos lembra que, no brincar, a criança elabora suas angústias, suas rivalidades e amores inconscientes. Ao transformar o mundo em cenário simbólico, ela reorganiza o caos interno. Quando o adulto invade esse espaço com sua lógica de correção, ele se torna intruso: aquele que impede a elaboração.
O que parecia apenas uma “correção leve” — “não é neve, é lama” — é, na verdade, um ato simbólico de castração do imaginário.
E o mais irônico é que isso raramente nasce de maldade. Acontece, quase sempre, da boa intenção: da mãe ou do pai que quer ensinar, orientar, educar. Mas, na ânsia de proteger do erro, retiram da criança o direito de se enganar poeticamente, de experimentar o mundo com os olhos da imaginação.
O supereu que invade o jogo
Freud descreveu o supereu como a instância que nasce da interiorização das vozes parentais, do conjunto de proibições e exigências morais que se inscrevem na psique. Ele é, de certo modo, o herdeiro simbólico dos “bons conselhos”, dos “não faça isso”, dos “seja um bom menino”.
Quando o adulto entra no brincar com o desejo de “ensinar o certo”, ele não apenas participa do jogo — ele o regula, o vigia, o moraliza. Assim, transforma o espaço de liberdade em território de julgamento.
A criança, então, aprende que o olhar do outro está sempre avaliando. E essa avaliação, repetida em gestos pequenos, funda o supereu: aquela voz interna que diz o que é permitido imaginar e o que deve ser reprimido.
Muitas vezes, o supereu do adulto não suporta o superego em formação da criança. O brincar da criança — livre, sem culpa — confronta o adulto com o que ele próprio perdeu: a capacidade de desejar sem cálculo. E é aí que nasce a tensão.
O adulto, ao ver a criança transformando a lama em neve, sente um desconforto inconsciente. Algo dentro dele recorda que já foi capaz de ver neve onde só havia lama — e que essa capacidade foi, um dia, interditada.
Por isso, ele corrige. Não porque a criança esteja errada, mas porque o seu próprio inconsciente não suporta a lembrança da perda do brincar.
O gesto de correção é, portanto, uma forma de defesa. Uma forma de recalcar o desejo que um dia foi livre, mas que agora precisa da lama para justificar sua descrença.
Mentira, fantasia e verdade simbólica
Para Freud, o oposto da mentira não é a verdade, mas o recalque. A mentira é um gesto simbólico, uma tentativa de reorganizar o mundo interno quando a verdade se torna insuportável.
Quando uma criança mente, ela não está, necessariamente, sendo moralmente incorreta. Ela está, muitas vezes, criando um caminho simbólico para sustentar algo que ainda não pode nomear. Da mesma forma, quando ela brinca dizendo que há neve onde só há lama, ela está mentindo poeticamente — e essa “mentira” é o alicerce da sua verdade interior.
É curioso como muitos adultos ensinam moralidade através da história de Pinóquio — onde a mentira faz o nariz crescer e a vergonha surge como castigo. O conto, em si, é uma bela metáfora da culpa e da formação da consciência moral. Mas, usado sem reflexão, ele transforma o processo simbólico em instrumento de medo.
A criança aprende, então, que imaginar pode ser punido. Que dizer o que não é literal pode trazer consequências. E, pouco a pouco, o desejo se esconde.
A psicanálise, ao contrário, ensina que é na mentira simbólica que o sujeito encontra a verdade do desejo. O que deve ser reprimido não é a fantasia, mas o excesso de realidade imposto antes da hora.
O brincar como ato ético
Winnicott dizia que, para que uma criança possa brincar, é preciso que haja um adulto capaz de “não invadir”. A ética do brincar está na capacidade de sustentar o espaço sem dominá-lo. O adulto ético não é o que ensina a brincar “certo”, mas o que suporta o não-saber, o silêncio, a cena inacabada.
Brincar é o ensaio da liberdade. Quando o adulto interrompe, ele não apenas impede o jogo: ele interrompe o nascimento da ética do desejo.
A criança que tem espaço para brincar aprende que o mundo pode ser habitado — que pode criar, destruir e reconstruir sem medo de perder o amor do outro. Mas quando o brincar é vigiado, a criança aprende outra coisa: que o amor do outro depende da obediência.
E é assim que nasce o sujeito ansioso, o adulto que precisa ser aprovado, o ser que confunde amor com desempenho.
A psicanálise não quer que os adultos abandonem a razão, mas que reaprendam a brincar. Porque sem o brincar — sem esse entrelugar de criação e liberdade — o sujeito não se forma; ele apenas se adapta.
A poça como espelho do desejo
Voltemos à cena inicial. A poça de neve, inventada pela criança, é o símbolo da pureza do olhar criador. Ela não mente; ela imagina. A mãe, ao corrigir, não percebe que a neve não era uma descrição do mundo, mas uma tradução do afeto.
A criança talvez não tenha visto neve na vida real, mas viu em desenhos, em sonhos, em histórias. Ao dizer “é neve”, ela não falava da substância física — falava de algo mais profundo: da vontade de ver beleza no frio, da esperança de que a vida seja também encantamento.
A correção — “não é neve, é lama” — introduz a criança ao princípio da realidade, mas o faz sem o filtro da delicadeza simbólica. É como se dissesse: “pare de desejar o que não existe”.
Mas o que é o desejo senão a aposta na existência do que ainda não é?
O adulto que perdeu o brincar
O adulto que corrige o brincar da criança é, em geral, o mesmo que perdeu o próprio espaço potencial. Vive dividido entre o dever e o desempenho, entre o que precisa ser e o que nunca pôde ser. Olha o mundo e já não o vê — apenas o administra.
Esse adulto não é mau; é ferido. Ferido pela pressa, pelo medo de parecer ridículo, pela educação que confundiu maturidade com endurecimento.
Mas há esperança. Porque basta uma criança que diga “é neve!” — e o adulto, se souber calar, pode sentir novamente o frio simbólico da imaginação.
A psicanálise nos lembra que a cura não é o retorno à infância, mas a reconciliação com o brincar perdido. Voltar a brincar não é regredir, é reencontrar o fio do desejo que um dia foi interrompido.
Conclusão – O direito de imaginar
Brincar é um ato político e poético. É o direito de existir entre o que é e o que pode ser.
A psicanálise nos convida a compreender que a infância não é apenas uma fase, mas uma dimensão permanente da experiência humana. É na infância — e em seu brincar — que o sujeito aprende a suportar o intervalo entre desejo e realidade.
Quando o adulto invade o brincar com correções, ele restringe o mundo àquilo que já existe. Mas quando sustenta o jogo, mesmo sem entender, ele abre espaço para que o novo possa nascer.
A poça de neve, afinal, não é sobre meteorologia. É sobre a liberdade de sonhar — mesmo quando o chão é de lama.
“É no brincar, e talvez apenas no brincar, que o indivíduo pode ser criativo e usar sua personalidade integral, e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu.”
— Donald W. Winnicott
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