O Perigo do Pai Bem-Intencionado
- Deivede Eder Ferreira

- há 1 dia
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Amor que ampara, amor que pesa: ambivalência, ideal e o corpo da filha
Há um pai que nunca faltou. Esteve presente, amou, pagou escolas, aplaudiu conquistas, levou e buscou, abriu portas. E, agora, com a filha adulta, continua “sempre que ela precisa”: resolve burocracias, antecipa pagamentos, acompanha consultas, opina, comparece. Tudo por amor. Mas algo range entre as tábuas dessa casa afetiva. Em certos dias—os dias em que ele se sente mais profundo, mais verdadeiro—esse pai se irrita com a filha que tem. Ele a atende… e a reprova. Ele a ajuda… e a acusa silenciosamente de não ter se tornado a mulher que ele esperava: “bem-sucedida”, “no eixo”, “magra”.
Aqui começa o nosso problema: o perigo do pai bem-intencionado. Não se trata de culpa ou absolvição; trata-se de estrutura e ambivalência. O pai que atende, apoia e provê—mas cujo amor vem impregnado do ideal ao qual a filha deveria corresponder—oferece uma forma de cuidado que aliança proteção e posse, amparo e vigilância estética; ternura e mandato de forma. E quando a filha não corresponde (no corpo, no estilo de vida, na medida de sucesso), o amor do pai revela o que sempre esteve ali: o narcisismo do ideal e o gozo de ocupar o centro do destino dela.
A psicanálise nos oferece aqui uma gramática fina: ambivalência (Freud), eu-ideal e ideal-do-eu, supereu, castração e Nome-do-Pai, desejo do Outro e gozo (Lacan). E, no corpo da filha, a possibilidade de ler a gordura como resposta simbólica: às vezes escudo, às vezes protesto, às vezes linguagem do indizível.
1) A ambivalência paterna: amar e reprovar o mesmo objeto
Freud nos ensinou que nenhum amor é puro: amor e ódio coexistem no mesmo vínculo. Isso vale “a fortiori” para a paternidade: o pai ama a filha—verdadeiramente—e, ao mesmo tempo, ressente o que nela contraria o seu ideal. A ambivalência não é defeito moral; é dado estrutural. O risco é quando, não reconhecida, a ambivalência governa por baixo: o pai acredita estar apenas “ajudando”, quando exige; acredita estar apenas “apoiando”, quando controla; acredita estar apenas “amando”, quando julga.
Essa ambivalência costuma emergir com força quando a filha escapa—do corpo magro idealizado, da carreira imaginada, do roteiro “eficiente” de vida. Se a filha engorda, falha; se muda de rota, desaponta; se hesita, infantiliza-se aos olhos do pai. O que faz o pai bem-intencionado? Atende ainda mais. E, ao atender, enche-se de raiva. Telescópio invertido da ambivalência: quanto mais ele a salva, mais a acusa de precisar ser salva.
2) Narcisismo do ideal: eu-ideal, ideal-do-eu e o olhar do pai
No registro freudiano e pós-freudiano, distinguimos eu-ideal (a imagem grandiosa de perfeição, frequentemente infantil) e ideal-do-eu (instância normativa que mede o eu). O pai bem-intencionado costuma instalar na filha um ideal-do-eu orientado por seu eu-ideal: “minha filha será aquilo que eu não fui”. Sucesso e magreza figuram, aqui, não como dados clínicos em si, mas como significantes do ideal—medidas do “ser amável” aos olhos do Outro.
Esse olhar do pai é estruturante—pode humanizar e sustentar—, mas, quando invade, transforma o corpo e a vida da filha em palco do ideal paterno. A filha cresce sob o olhar avaliativo: cada nota, cada escolha, cada quilo ganham valor de prova. O amor fica colado à performance (“orgulho-de-pai”) e à forma (“você está ótima, continue magra”). O cuidado vira vigilância; o elogio vira mandato.
3) Supereu e a voz que morde: “Goza, mas conforme o ideal”
O supereu, na leitura freudiana e lacaniana, não é o “anjinho moral”; é uma agência paradoxal: manda gozar e pune por gozar. Para a filha, a voz superegóica pode soar assim: “Seja excelente; seja magra; não decepcione”. Quando come, culpa; quando restringe, culpa; quando falha, culpa; quando triunfa, não basta—porque o supereu nunca se dá por satisfeito.
O pai bem-intencionado, sem o saber, pode alimentar essa voz: “Eu só quero o melhor para você”—mas, no subtexto, “o melhor” é o meu melhor. O amor vira imperativo e a balança, tribunal. O corpo torna-se o campo de batalha entre o desejo da filha e a voz do Outro.
4) Nome-do-Pai e castração: limites que libertam (ou aprisionam)
Lacan nomeia de Nome-do-Pai a função simbólica que corta a fusão imaginária, introduz limite e autoriza o desejo enquanto separado do desejo do Outro. O pai que suporta a falta—a própria e a do filho—consegue dizer “não” onde o excesso sufoca e consegue abrir espaço para que a filha exista fora do seu ideal.
Mas há pais que recusam a falta: estão sempre lá, antecipam, resolvem, protegem—e, por isso mesmo, apertam. Ao não consentir que a filha falhe e se autorregule, o pai suspende a castração simbólica: tudo se passa como se não pudesse faltar nada. Para a filha, o amor que tudo supre é também o amor que impede nascer. E o pai, em sua benevolência, goza de ser indispensável.
5) O gozo do pai amoroso: ser o herói da filha
No texto sobre a mãe, você nomeou com precisão o gozo sintomático do cuidado. O análogo paterno comparece aqui como gozo narcísico do herói: é prazeroso ser o que salva, o que abre portas, o que sabe. Não há maldade; há estrutura. Mas, quando a filha não corresponde ao ideal (na carreira, na vida amorosa, no corpo), esse gozo se converte em raiva silenciosa. O pai, frustrado em sua “dimensão mais profunda”, vive a ambivalência a céu aberto: atende e odeia atender; ajuda e despreza a ajuda que precisa dar.
Isso se traduz clinicamente em frases duplas: “Eu faço tudo por você” (e por isso me deve); “Quero te ver feliz” (desde que nos meus termos); “Pode contar comigo sempre” (porque não confio que você consiga). Amor e desconfiança formam um nó: quanto mais ele cuida, menos acredita; quanto menos acredita, mais cuida.
6) O corpo como resposta: gordura, muralha e carta ao pai
Chegamos ao ponto que você propôs: a gordura como forma de proteção contra o pai bem-intencionado da infância. A leitura psicanalítica evita reducionismos: não existe causa única para o sobrepeso. Mas podemos ler o corpo gordo como texto, sintoma com função.
Muralha: o aumento de volume como fronteira. Diante do olhar que mede, a filha cresce; diante das mãos que “sempre ajudam”, a filha arma espessura. O corpo diz: “Chega. Há um fora aqui.”
Carta ao pai: a gordura como grito mudo. Onde a palavra não pode acusar (“você me vigia com amor”), o corpo escreve o conflito: “Eu não serei a sua imagem; não serei a sua vitória”.
Tempo: perder peso exigiría separar-se do pai-ideal. Enquanto isso for intolerável (para um, para outro, ou para ambos), o corpo mantém o laço. O sintoma pode “segurar” a relação.
Oralidade e falta: em termos metapsicológicos, o comer pode operar como regulação do desprazer, tentativa de tamponar a falta que o pai não deixou existir. Se “nunca faltou nada”, o sujeito inventa a falta no corpo—um excesso que diz a falta não simbolizada.
Importa sublinhar: não se trata de “culpar o pai” pelo peso, mas de oferecer à filha um modo de ler o próprio corpo fora da moral. O corpo aqui fala—e, quando escutado, pode modificar sua função.
7) A filha adulta que sempre é atendida: dependência travestida de amor
Na vida adulta, o arranjo se reatualiza: a filha pede, o pai atende. Ela organiza sua autonomia na certeza de que, quando a realidade “pesar”, o pai substituirá. Isso infantiliza. E o pai, secretamente, precisa disso: é a confirmação de que ainda é central. O laço se nutre de dependência e ressentimento.
Para a filha, a conta vem no corpo e na culpa: cada pedido renova o pacto (“você me atende; eu te devolvo com o corpo que te afronta”). Para o pai, a conta vem na amargura: cada ajuda renova a sensação de “eu falhei em te fazer forte”—quando, na verdade, falhou em suportar perder a centralidade.
8) Clínica da separação: o que muda quando o pai consente a falta
O giro ético exige muito do pai: renunciar ao lugar de herói, consentir em não ser o nome do destino da filha, tolerar o risco de que ela desaprove. Em termos lacanianos, trata-se de sustentar a função do Nome-do-Pai, não como lei que sufoca, mas como lei que libera o desejo do sujeito.
Alguns movimentos clínicos possíveis:
Da presença que antecipa à presença que escuta Deixar de resolver de antemão; perguntar o que ela quer; suportar o não-pedido.
Do ideal como medida ao reconhecimento da diferença Dizer explicitamente: “O seu corpo e a sua vida não são meus projetos”. Aqui, o pai desidealiza o amor.
Da cobrança silenciosa à palavra assumida O pai pode nomear a própria ambivalência: “Eu me pego com raiva quando você me pede ajuda e, ao mesmo tempo, quero te ajudar”. Quando o pai fala da própria divisão, libera a filha da loucura de adivinhar a dívida.
Do gozo do herói ao desejo de testemunha Trocar o “eu te salvo” por “eu te testemunho”. Estar ao lado, não à frente. A testemunha legitima o sujeito; o herói o substitui.
9) E a filha? Do corpo-muralha ao corpo-morada
Para a filha, a travessia passa por subjetivar o olhar paterno (“você me quis de um jeito”) e separar amor de obediência estética. Isso frequentemente exige análise: encontrar uma cena de fala onde o “cuidado que pesa” possa tornar-se tema, onde o “pai que sempre atende” possa ser outro que erra, falha, sente ambivalência. Quando o pai cai do pedestal, abre-se lugar para o desejo da filha.
No corpo, isso pode se traduzir em rearranjos: não um combate moral à gordura, mas uma mudança de função. O que era muralha pode ir tornando-se morada—um corpo habitável, com bordas que não precisam ser armadas contra o Outro. Se o pai cede o olhar que pesa, o corpo cede a tarefa de fazer fronteira sozinho.
10) O ponto cego do amor paterno: quando o ideal vira violência
O pai bem-intencionado não é violento nos termos óbvios; é amoroso. Justamente por isso, não suspeita da violência do ideal. Querer o melhor para a filha, quando “o melhor” é definido fora dela, fere. A ferida não sai em hematomas; aparece como falta de ar diante do olhar, como culpa crônica, como sintomas no corpo e na comida.
A ética da psicanálise chama o pai à responsabilidade sobre o seu ideal. Amar é reconhecer que o outro nos escapa. E que escapar é a melhor notícia do amor: é aí que nasce um sujeito.
11) Conclusão: quando o pai aprende a faltar
No final, não se trata de que o pai “ame menos”, mas de que aprenda a faltar. Faltar como controle, faltar como salvação, faltar como padrão. E estar presente de outro modo: como limite que libera, como testemunha que sustenta, como nome que autoriza a filha a não ser seu espelho.
Sim, esse pai atende; e, sim, tem raiva—porque a filha não realizou o seu ideal. Quando essa frase pode ser dita, algo muda: a ambivalência encontra palavra e cessa de governar pelo sintoma. O pai descobre a humanidade do seu amor; a filha, o direito ao seu corpo e à sua rota.
Entre o amor que aperta e o amor que autoriza, há um passo difícil: consentir que o outro exista sem ser a nossa obra. Chamamos a isso, em psicanálise, de ato de pai.
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