Entre o Eu e o Outro: Uma Análise Psicanalítica do Filme Identidade (Identity, 2003)
- Deivede Eder Ferreira

- 6 de out.
- 9 min de leitura
Análise psicanalítica do filme Identidade (Identity, 2003), explorando o inconsciente, a fragmentação do eu e o transtorno dissociativo de identidade sob a ótica de Freud e Lacan.

1. Introdução – A Mente Como Cena do Crime
O filme Identidade (Identity, 2003), dirigido por James Mangold, é um dos mais intrigantes thrillers psicológicos do cinema contemporâneo. Inspirado livremente na estrutura narrativa de Psicose e nas ideias psicanalíticas sobre o transtorno dissociativo de identidade, o longa convida o espectador a decifrar um mistério que, aos poucos, revela-se não como um crime externo — mas como uma tragédia psíquica interna.
No plano literal, dez estranhos ficam presos em um motel isolado durante uma tempestade. Um a um, começam a morrer. O que parece ser uma trama policial logo se transforma em um enigma sobre o inconsciente. Descobrimos, então, que todos os personagens são personalidades de um único homem — um condenado à morte por assassinato, diagnosticado com múltiplas identidades.
Esse ponto de virada transforma o filme em um espelho da psicanálise: o assassinato não é apenas físico, mas simbólico. Cada “morte” representa a tentativa do sujeito de eliminar partes de si mesmo, reorganizando o próprio psiquismo para sobreviver.
O cinema, como lembra a obra Psicanálise em Cena: 50 Dicas de Filmes Psicanalíticos, é um palco privilegiado para o inconsciente. Em Identidade, esse palco é literal — o cenário do motel é o teatro interno onde o sujeito encena o colapso e a luta por um novo equilíbrio psíquico.
2. O Enigma da Identidade e o Espelho do Eu
Freud introduziu o conceito de “divisão do eu” em vários textos, mostrando como o sujeito nunca é uno, mas composto por partes em conflito. Lacan, mais tarde, ampliou essa ideia com o “estádio do espelho”: o momento em que o ser humano forma uma imagem ilusória de unidade, necessária para a entrada no mundo simbólico.
Em Identidade, essa unidade se desintegrou. O espelho está quebrado. As múltiplas personalidades que habitam o condenado representam os fragmentos do eu — cada um tentando reivindicar a centralidade perdida.
O motel isolado funciona como metáfora desse espelho estilhaçado. Lá, os personagens (as identidades internas) se veem, se confrontam e se matam, como se a psique estivesse tentando destruir suas próprias máscaras para reconstruir uma narrativa coerente de si.
Essa luta pela unidade é o drama essencial do sujeito moderno: o esforço de recompor uma identidade estável em meio ao caos das vozes internas. Como diz Lacan, “o eu é uma ficção necessária” — e em Identidade, essa ficção está sendo reescrita a sangue.
3. O Motel Como Espaço do Inconsciente
A estrutura narrativa do filme é uma metáfora perfeita para a topologia psicanalítica. Se olharmos o motel como uma representação do aparelho psíquico, cada quarto corresponde a uma zona da mente — algumas conscientes, outras recalcadas, e outras totalmente tomadas pelo gozo.
A chuva incessante é o fluxo do inconsciente: imprevisível, incontrolável e sempre retornando. Os corredores, as portas trancadas e as vozes no rádio simbolizam as cadeias de significantes que organizam o pensamento.
Tudo ali é metáfora. A tempestade que impede a saída é a resistência — aquilo que mantém o sujeito prisioneiro de si mesmo. O espelho quebrado no banheiro, as chaves numeradas, os gritos vindos de cômodos vazios: todos esses elementos são representações simbólicas das falhas do eu, dos buracos na narrativa pessoal.
Freud, em A Interpretação dos Sonhos, descreveu o inconsciente como uma cena teatral. É exatamente o que Mangold faz: transforma o inconsciente em cenário — e o espectador em analista.
4. A Dissociação Como Defesa e Castigo
O transtorno dissociativo de identidade — outrora chamado de “personalidade múltipla” — é uma defesa extrema do psiquismo frente ao trauma. Quando o sujeito não suporta uma experiência intolerável, fragmenta-se para continuar existindo. Cada personalidade carrega uma parte da dor e da história, permitindo que o conjunto sobreviva.
Em Identidade, esse processo é levado ao extremo. O condenado (Malcolm Rivers) criou dez identidades para suportar o peso de uma vida marcada pela violência e pela culpa. Essas partes agora lutam pelo controle — e pela sobrevivência psíquica.
A dissociação, nesse contexto, não é apenas patológica. É um ato de criação. O sujeito, incapaz de sustentar o real do trauma, inventa novos eus. Cada um representa uma forma de defesa: o protetor, o inocente, o violento, o maternal, o cínico.
Mas quando o equilíbrio interno se rompe, a criação se volta contra o criador. O psiquismo transforma-se em campo de batalha. E o filme traduz visualmente essa guerra interior: o assassino que o tribunal quer punir é, na verdade, o sintoma de uma mente tentando se reorganizar.
5. A Morte Como Metáfora de Recalque
No plano simbólico, as mortes no motel não são assassinatos reais — são atos de recalque. Cada identidade eliminada representa uma tentativa do inconsciente de apagar o trauma, suprimir um conteúdo intolerável.
Freud descreveu o recalque como um processo em que o psiquismo “mata” certas representações, empurrando-as para o inconsciente. Mas, como sabemos, o recalcado retorna — e no filme, esse retorno assume a forma de violência.
Cada vez que uma identidade “morre”, algo retorna para ocupar seu lugar. O eu tenta se recompor, mas o vazio deixado por cada parte suprimida reabre a ferida. O espectador, assim como o analista, assiste ao movimento pulsional entre vida e morte, entre memória e esquecimento.
A psicanálise reconhece que não existe morte simbólica sem resto. O que é expulso do psiquismo volta na forma de sintoma — e é justamente isso que vemos no desfecho do filme: o retorno do reprimido, o sintoma que sobrevive à tentativa de cura.
6. O Juízo Final: A Sessão de Análise
O ponto culminante do filme acontece na cena do julgamento, quando o psiquiatra tenta convencer o tribunal de que Malcolm Rivers não é responsável pelos assassinatos, por estar fragmentado em múltiplas identidades.
Do ponto de vista psicanalítico, essa cena é a dramatização do que ocorre em uma sessão de análise: o sujeito se apresenta diante da Lei (o simbólico), tentando reorganizar o caos de suas narrativas internas.
O juiz representa o supereu, o psiquiatra é o analista, e o réu é o sujeito dividido — preso entre o desejo e a culpa. A sentença judicial funciona como metáfora da tentativa de atribuir sentido àquilo que é, por natureza, sem sentido: o inconsciente.
Mas o verdadeiro julgamento acontece dentro do sujeito. O tribunal é interno. A questão não é se ele é culpado, mas se poderá suportar o próprio desejo sem destruir a si mesmo.
Como em toda análise, o veredito é ambíguo: há alívio, mas não há redenção. A mente de Malcolm continua habitada pelos ecos de si mesma.
7. O Retorno do Recalcado – O Final e o Inconsciente
O final de Identidade é um dos mais emblemáticos do cinema psicanalítico moderno. Quando parece que o “inocente” — a personalidade infantil — é a única sobrevivente, o filme revela o golpe final: ela é o assassino real.
Essa reviravolta não é apenas um recurso narrativo. É a encenação do princípio freudiano de que “o inconsciente é atemporal e inocente”. A criança interior, símbolo de pureza, também é a portadora do gozo mais primitivo — aquele que desconhece o limite da lei.
A psicanálise ensina que o desejo não tem moral. O id (ou isso) busca satisfação absoluta, indiferente à culpa ou à proibição. No filme, essa força retorna sob a forma da criança que mata — o gozo infantil que sobreviveu a todas as defesas.
O último assassinato não é externo: é o colapso final da tentativa de síntese. O inconsciente vence. E o espectador sai da sala de cinema com a sensação de que também carrega, dentro de si, essa criança que observa o mundo com inocência e crueldade ao mesmo tempo.
8. Freud, Lacan e o Crime da Subjetividade
Freud, em O Estranho (1919), fala do “unheimlich” — o inquietante familiar. É o momento em que o sujeito reconhece no mundo algo que lhe é íntimo, mas ao mesmo tempo perturbador. Identidade é a filmagem do unheimlich em estado puro: o terror de descobrir que o inimigo está dentro de nós.
Lacan acrescentaria que o verdadeiro horror não está no outro, mas no gozo que nos habita. O filme traduz essa ideia ao mostrar que o assassino não é um monstro externo, mas o próprio sujeito dividido entre suas máscaras.
O crime, nesse sentido, é a metáfora do ato analítico: matar as falsas identidades, uma a uma, até restar o núcleo duro do desejo. Mas o desejo, quando confrontado, é sempre perigoso. O que resta após a análise não é a paz, e sim a lucidez trágica de saber que o eu é apenas um arranjo provisório de forças inconscientes.
9. O Olhar do Analista – Cinema Como Interpretação
O espectador de Identidade ocupa o lugar do analista: observa, escuta, interpreta. Cada cena é um significante, cada personagem um traço do inconsciente. O enredo nos convida a exercer a escuta — não a escuta do som, mas a escuta simbólica.
O cinema, como lembra novamente o livro Psicanálise em Cena: 50 Dicas de Filmes Psicanalíticos, é o grande aliado da clínica porque nos mostra o que a palavra esconde. Assistir a Identidade é, portanto, uma forma de análise coletiva: todos nós, ao acompanhar o desenrolar da história, reconhecemos nossas próprias divisões internas, nossas partes em conflito, nossos “eus” que se matam silenciosamente no cotidiano.
O filme não quer apenas entreter. Ele nos analisa.
10. Trauma, Repetição e Gozo
O trauma é o núcleo invisível que estrutura o filme. Freud definia o trauma não como o evento em si, mas como aquilo que retorna incessantemente porque não foi simbolizado. O que não pôde ser dito volta em forma de sintoma — ou, neste caso, de assassinato.
Cada morte é uma repetição traumática. O sujeito tenta livrar-se do peso do passado, mas o trauma insiste, como a tempestade que não cessa. Lacan chamaria isso de “compulsão de repetição”: o desejo retorna sempre ao mesmo ponto, porque há algo no gozo que é impossível de simbolizar.
O gozo é essa mistura de prazer e dor que move as ações humanas. Em Identidade, o gozo aparece na cena do crime, no olhar do assassino, no fascínio pelo horror. O filme nos confronta com a parte obscura de nós mesmos — aquela que goza com o sofrimento e que, ao mesmo tempo, o teme.
11. O Nome-do-Pai e a Falha da Lei
Lacan dizia que a psicose surge quando o Nome-do-Pai é foracluído — ou seja, quando o significante que representa a Lei simbólica é excluído do inconsciente. No caso de Malcolm Rivers, essa falha é evidente: não há Lei que organize o desejo.
O motel é um espaço sem autoridade, sem centro. A ausência do pai simbólico cria o caos: cada identidade age sem referência, guiada apenas pela pulsão. A função paterna — que deveria nomear, ordenar, interditar — foi substituída por um tribunal impotente.
Esse vazio é o que produz o colapso psíquico. A psicanálise ensina que o sujeito precisa de um limite para não se perder no gozo. Sem o Nome-do-Pai, o desejo se transforma em violência. E o filme mostra esse processo com brutal beleza: a mente sem Lei é uma mente em guerra.
12. A Cura Como Reconhecimento do Fragmento
No final, não há integração plena. O sujeito não se “cura” — ele apenas reconhece o próprio abismo. A verdadeira cura, segundo Freud e Lacan, é aceitar a divisão, não negá-la.
O filme, portanto, não oferece uma solução, mas uma lição: o eu é múltiplo, o inconsciente é uma multidão, e a unidade é apenas um artifício necessário para habitar o mundo. O que o analista oferece não é a eliminação do sintoma, mas a possibilidade de o sujeito fazer algo com ele.
Malcolm, no final, não consegue — sua criança interna, ainda possuída pelo gozo, o destrói. Mas o espectador, ao assistir, pode reconhecer em si esse mesmo ponto de ruptura — e talvez encontrar aí a chance de uma elaboração simbólica.
13. Conclusão – O Inconsciente é o Verdadeiro Assassino
Identidade é, no fundo, uma parábola psicanalítica sobre o preço da sobrevivência psíquica. O filme nos lembra que cada um de nós abriga uma multidão de vozes — algumas desejam viver, outras desejam destruir.
Freud dizia que “o eu não é senhor em sua própria casa”. James Mangold transformou essa frase em imagem: um motel repleto de hóspedes que brigam pelo controle.
A genialidade de Identidade está em mostrar que o verdadeiro terror não está no crime, mas na descoberta de que o assassino é parte de nós mesmos. A psicanálise, por sua vez, nos convida a não matar essas partes, mas a escutá-las — pois cada fragmento do eu carrega uma verdade sobre o desejo.
Entre o assassino e a vítima, entre o analista e o analisando, há apenas um espelho. E o que vemos nele é o mistério que nos constitui: o inconsciente, esse estranho familiar que habita cada um de nós.
📚 Leitura Recomendada
Para aprofundar o diálogo entre cinema e psicanálise, recomenda-se a leitura do livro 👉 Psicanálise em Cena: 50 Dicas de Filmes Psicanalíticos. A obra oferece uma curadoria de filmes e reflexões teóricas que, assim como Identidade, revelam o poder do cinema como espelho do inconsciente.
Palavras finais: O filme Identidade (2003) é um caso exemplar de como o cinema pode traduzir, em imagens, os princípios fundamentais da psicanálise: o inconsciente como estrutura de linguagem, a fragmentação do eu, o retorno do recalcado e o gozo que sustenta o desejo. Uma análise psicanalítica desse filme é, portanto, um convite a olhar para dentro — onde, como no motel de Malcolm Rivers, cada porta trancada guarda um nome, uma história e uma parte esquecida de nós mesmos.



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