A Substância: Uma Análise Psicológica e Psicanalítica do Corpo Que o Ideal Devora
- Deivede Eder Ferreira

- há 19 horas
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Este artigo é assinado por Deivede Eder Ferreira, autor disponível na Amazon em https://www.amazon.com.br/stores/author/B0BZM6LHMH
Há filmes que passam diante de nós como distração. E há filmes que passam através de nós como uma revelação incômoda — daquelas que rearranjam silenciosamente o modo como olhamos o espelho, o tempo e o próprio corpo. A Substância pertence a esta última categoria. Ele não quer apenas ser visto: quer nos ver. Quer examinar o que fazemos com nossos desejos, nossos medos, nossas tentativas de esconder a própria finitude. Quer revelar o pacto silencioso que fazemos diariamente com a tirania da juventude.
O filme de Coralie Fargeat é um estudo clínico da ferida narcísica contemporânea. Mas não do narcisismo banal — daquele que se veste de selfie e filtro — e sim de seu movimento mais profundo: o narcisismo como dor, como perda, como esforço contínuo de sustentar um ideal que exige sempre mais do que podemos dar.
O que está em jogo não é apenas “ficar jovem”. É algo mais radical: é o colapso da subjetividade quando o corpo deixa de ser lugar de existência e passa a ser apenas palco para o olhar do Outro. E, nesse sentido, A Substância é menos um filme e mais um diagnóstico. Um diagnóstico que se escreve na carne deteriorada da protagonista, na violência do duplo jovem que a persegue e na monstruosidade final que irrompe quando o corpo real ousa falar.
I. A Juventude Como Cenário da Crueldade
A primeira violência que o filme revela não está no sangue, nem na carne exposta, nem nos gestos grotescos. Está na cena silenciosa da demissão de Elisabeth Sparkle, interpretada por Demi Moore. O momento em que ela percebe que não perdeu apenas um emprego: perdeu o lugar simbólico onde existia. A televisão não a rejeita por incompetência ou falta de talento — ela a rejeita por algo muito mais íntimo: seu corpo não é mais jovem o suficiente para ser visto.
É aqui que a psicologia e a psicanálise começam a se insinuar na narrativa. Porque o que acontece não é apenas externo. O olhar do apresentador, do programa, do público e da indústria desperta o olhar interno mais cruel: aquele que transforma o corpo em erro, o tempo em falha, a ruga em sentença.
A juventude, nesse universo, não é idade — é moeda. E a perda dessa moeda não é perda de valor; é expulsão do mercado da existência.
Coralie Fargeat revela algo que muitos sentem mas raramente verbalizam: no regime estético contemporâneo, o corpo envelhecido é tratado como uma espécie de vergonha pública, uma inconveniência visual que precisa ser escondida ou corrigida.
II. A Substância Como Significante Mestre
Quando Elisabeth aceita submeter-se ao procedimento secreto que cria uma versão jovem de si mesma, ela não está apenas assinando um contrato de ficção científica. Está aceitando um contrato ontológico. A “substância” não é apenas uma tecnologia; é um Significante-Mestre que ordena uma reorganização completa da subjetividade.
Ela promete uma juventude nova, mas ao preço de algo muito mais profundo: a divisão radical do sujeito.
Surge Riley: não como filha, não como clone, não como produto — mas como ideal.A versão jovem perfeita que nunca falha, nunca treme, nunca duvida.
No vocabulário freudiano, Riley é o Ideal do Eu encarnado. Aquilo que o sujeito não é, mas acredita que deveria ser. Aquilo contra o qual o sujeito se mede e sempre perde.
A psicanálise sempre soube que o ideal é mortífero. Não porque seja errado ter metas, mas porque o ideal não tolera a falta. E, onde não há tolerância para a falta, não há espaço para o sujeito.
Riley não tem rugas, mas também não tem história. Não tem marcas, mas também não tem alma. É perfeita, e por isso mesmo, desumana.
III. Os Velhos Saltitantes: O Sonho Patético da Eterna Juventude
Talvez uma das cenas mais perturbadoras do filme seja a dos idosos correndo, pulando, dançando com corpos flexíveis demais, velozes demais, falsos demais. Há algo de profundamente antinatural — e, ao mesmo tempo, profundamente familiar — naquelas imagens.
Porque o que vemos ali não é o triunfo da juventude sobre o tempo, mas a negação histérica da própria história.
Aqueles corpos não rejuvenescem: eles fingem. Fingem vitalidade, fingem energia, fingem pertencimento a uma cultura que exige brilho sem cansaço. Corpos que querem ser jovens sem suportar o custo simbólico da juventude. Corpos que querem ser suaves sem suportar a vulnerabilidade. Corpos que querem ser ágeis sem suportar a espera.
E é por isso que soam patéticos e trágicos: são corpos tentando habitar uma temporalidade que já não lhes pertence.
Do ponto de vista lacaniano, é a vitória do imaginário sobre o simbólico. A imagem vence a história. O brilho vence a experiência. A fachada vence a profundidade.
Mas toda vitória da imagem sobre o simbólico é, cedo ou tarde, uma derrota do sujeito.
IV. Andar em Grupo: A Massa Narcísica e o Silêncio da Diferença
Eles andam juntos porque perderam a singularidade. Porque a juventude, quando se torna tirania, só pode ser vivida como imitação. Porque o grupo oferece a ilusão de que, se todos performarem a mesma idade inexistente, ninguém precisará enfrentar a própria velhice.
Psicologicamente, essa cena expõe fenômenos conhecidos:– conformidade estética,– comparação constante,– medo de exclusão,– dissolução da identidade.
Do ponto de vista da psicanálise, o que aparece ali é a formação de uma massa narcísica, como descreveu Freud em Psicologia das Massas: o sujeito sacrifica sua singularidade para pertencer à imagem coletiva. Ele não é mais um “eu”, mas uma peça do espelho onde todos tentam acreditar que ainda brilham.
Mas o preço do pertencimento é o apagamento do sujeito.
V. A Jovem Perseguindo a Velha: O Ideal Como Predador
A cena da perseguição é brilhante não apenas como composição cinematográfica, mas como metáfora psíquica. Não é a velha correndo atrás da juventude perdida. É o ideal correndo atrás do sujeito.
É a versão perfeita caçando a versão verdadeira.
A psicanálise sempre advertiu que o ideal, quando liberto de sua função organizadora, se torna um predador interno. Ele vigia, acusa, julga, exige.
O corpo jovem de Riley não corre porque quer liberdade. Corre porque quer eliminar a prova viva da imperfeição de Elisabeth. Corre porque a existência do corpo real ameaça a legitimidade do ideal. Corre porque o ideal só existe enquanto a falha permanece escondida.
E essa é a verdade mais cruel do filme: o ideal não deseja o sujeito. O ideal deseja a morte do sujeito.
VI. A Jovem Muda nas Costas: O Peso Insuportável do Ideal que Não Fala
Há uma imagem, quase insuportável, que revela a essência do horror: Riley, a versão jovem, colada às costas de Elisabeth, como um parasita, um fardo, um apêndice perfeito e mudo.
A mudez é o detalhe crucial.
O ideal não fala porque o ideal não tem interioridade. O ideal não deseja — exige. O ideal não dialoga — ordena. O ideal não pergunta — acusa.
Na teoria lacaniana, Riley é o objeto a do olhar — aquilo que captura, fascina e escraviza o sujeito. Um objeto que não tem voz própria, mas carrega a voz silenciosa do supereu cultural: “Você deve ser jovem. Você deve ser perfeita. Você deve ser desejável. Você deve…”.
Carregar Riley nas costas é carregar esta voz colada à pele, exigindo, medindo, comparando, devorando aos poucos a energia psíquica necessária para existir.
Nenhum humano suporta carregar o próprio ideal por muito tempo. Quando tenta, adoece.
VII. A Festa: Quando o Corpo Real Ousa Falar e se Torna Monstro
No ápice simbólico do filme, Elisabeth tenta falar — não como imagem, mas como sujeito. E, no instante em que a palavra volta ao corpo envelhecido, algo se rompe.
O que surge é um monstro.
Um monstro não porque ela seja feia.
Mas porque, em uma cultura obcecada por juventude e performance, o corpo real torna-se um escândalo.
O monstro é a ruga que aparece sem pedir licença. É a lágrima que borra a maquiagem perfeita. É a carne que não obedece à lente. É o envelhecimento que insiste em existir apesar do decreto social de que deve ser escondido.
A monstruosidade é a verdade que retorna quando o imaginário se desfaz. É o real do corpo aparecendo, sem pedir permissão.
E o filme registra essa irrupção não como erro estético, mas como gesto político: o corpo real, quando fala, desmonta toda a ficção do ideal.
VIII. A Insurreição da Carne: O Real Como Última Defesa Contra o Ideal
No clímax brutal, as versões jovem e velha se fundem em um espetáculo de carne, sangue e horror. Para muitos, é uma cena grotesca. Para outros, é o ponto exato onde o filme deixa de ser metáfora e torna-se denúncia.
A carne explode porque a imagem não é capaz de contê-la. O real retorna porque o ideal tentou calá-lo por demais. A violência do corpo é a reação natural a décadas de violência simbólica.
O horror corporal, aqui, não é exagero: é linguagem. Linguagem daquilo que a sociedade tenta calar. Linguagem daquilo que todos tentamos esconder. Linguagem daquilo que, silenciosamente, está morrendo dentro de nós quando aceitamos viver sob o peso do ideal.
IX. O Corpo Que o Ideal Devora
No fim de A Substância, não resta dúvida: o corpo ideal não liberta — escraviza. O corpo ideal não inspira — humilha. O corpo ideal não sustenta — consome.
E aquilo que consome, consome pela raiz: consome a voz, consome a singularidade, consome o desejo, consome a história, consome a existência.
O ideal devora o sujeito. E o que sobra é apenas uma casca brilhante, mas vazia.
X. Conclusão: A Ética da Carne
A Substância não é um filme sobre envelhecer. É um filme sobre desaparecer. Sobre o risco de desaparecer dentro daquilo que esperam que sejamos. Sobre a necessidade de recuperar o corpo real — com suas falhas, seus limites, suas rugas, seus silêncios, suas dores — como último território onde ainda podemos existir.
O corpo real não vence o ideal pela força. Vence porque é vivo. Vence porque é imperfeito. Vence porque não precisa de aplauso.
O corpo real é a única substância que nos resta.
E, talvez, a única que vale a pena sustentar.
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Bibliografia:
BORDO, Susan. Unbearable Weight: Feminism, Western Culture and the Body. Berkeley: University of California Press, 1993.
FARGEAT, Coralie. The Substance. Filme. França/Estados Unidos: Universal Pictures, 2024.
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