Fratura: quando o delírio é o último refúgio do eu
- Deivede Eder Ferreira

- 5 de out.
- 11 min de leitura
(Uma leitura psicanalítica do filme Fratura — Brad Anderson, 2019)
Aviso de spoilers: este artigo analisa pontos decisivos da trama e do desfecho.

1) Por que Fratura interessa à psicanálise
Desde Freud, a psicanálise interroga não apenas os sintomas, mas as ficções que sustentam a vida psíquica. Em Fratura (2019), acompanhamos Ray, um pai que leva a filha ferida a um hospital remoto e, a partir daí, experimenta o desaparecimento da esposa e da criança, a hostilidade de funcionários e um labirinto de procedimentos sem respostas. A tensão narrativa cresce até a revelação de que aquilo que víamos como realidade era, na verdade, uma versão delirante montada pelo protagonista para sobreviver ao insuportável.
Se a neurose recalca, a psicose reconstrói. O filme é precioso justamente por dramatizar a função “terapêutica” do delírio: quando a verdade é intolerável, a mente fabrica uma verdade vivível. Este é o eixo sobre o qual gira a nossa leitura: Fratura como clínica do delírio, onde o eu, à beira do colapso, inventa uma realidade que o absolva da culpa e reordene o mundo.
2) Delírio como tentativa de cura: a lição freudiana
Em 1911, Freud, ao estudar o célebre Caso Schreber, formula uma tese essencial: o delírio é uma tentativa de reconstruir o mundo após o seu desmoronamento subjetivo. O que cai, na psicose, é a amarração simbólica da realidade; o delírio, então, ergue uma nova arquitetura de sentido para que o sujeito não se desintegre.
Em Fratura, o ponto de colapso é a cena traumática inaugural (o acidente e suas consequências). Em vez de elaborar a perda, Ray a apaga e substitui por uma narrativa de perseguição: o hospital torna-se cúmplice de um crime, a filha e a esposa foram levadas, e ele, o pai, precisa salvá-las. Não é um “erro de percepção” banal, mas uma operação de sentido: Ray costura um mundo alternativo que permita sustentar o eu — um eu que, de outro modo, seria esmagado pela culpa e pelo horror.
Essa operação tem lógica clínica: o delírio reescreve a causalidade. Aquilo que, na realidade objetiva, seria vivido como culpa e impotência, na realidade delirante transforma-se em missão e reparação. O pai não é quem falhou; é quem luta contra uma conspiração. A dinâmica é de uma clareza paradigmática: o delírio salva o eu do naufrágio.
3) A chave lacaniana: forclusão e retorno do real
Lacan radicaliza a leitura: na psicose, o que está em jogo não é apenas o excesso de sofrimento, mas um furo estrutural — a forclusão do Nome-do-Pai, significante da Lei que dá consistência à realidade. Quando esse operador simbólico não se inscreve, o sujeito não dispõe da mesma costura simbólica que, nas neuroses, faz mediação entre desejo, lei e gozo. O real invade, e o sujeito precisa inventar uma suplência.
Em Fratura, o “hospital” é mais do que cenário: é metáfora tópica do inconsciente. Corredores idênticos, portas que não se abrem, documentos que não coincidem, olhares evasivos — toda a lógica do Outro aparece como enigma ameaçador. A instituição (hospital) representa a Lei; no delírio de Ray, a Lei é perversa, “rouba órgãos”, mente, encobre crimes. Isto condensa a relação típica da psicose com o Outro: o Outro é suspeito, persecutório, não garantidor da lei, mas agente do mal. Esse deslocamento é o modo como a subjetividade psicótica trata a forclusão: se falta a Lei simbólica, resta combatê-la como se fosse um complô.
O “retorno do real”, por sua vez, surge em fissuras: lapsos, ambiguidades de tempo, erros de continuidade que o filme semeia como indícios (o que vimos e o que “foi visto” por Ray não batem). São pontos onde o real insiste, ameaçando furar a fábula. A montagem visual, por isso, cumpre função clínica: o espectador experimenta uma transferência com o delírio — acredita, duvida, volta a acreditar — até o momento em que a costura se desfaz e a verdade irrompe: não havia ninguém para salvar.
4) Paranoia, não esquizofrenia: qual “tipo” de psicose vemos?
Convém diferenciar. Na esquizofrenia, costuma haver desagregação do discurso, neologismos, rupturas sintáticas; o sujeito perde a linearidade da narrativa. Em Fratura, ocorre o contrário: o discurso é rígido e coerente (ainda que falso). Há convicção inabalável, encadeamento lógico e missão. Isso se ajusta melhor à psicose paranoide: o delírio organiza o mundo com uma lógica férrea (perseguição → sequestro → resgate).
Essa coerência intrapsíquica é tão importante quanto enganosa. “Faz sentido” — dentro da chave delirante. A psicose paranoide fecha a realidade num circuito interpretativo: tudo confirma a hipótese do protagonista. A desconfiança generalizada é um mecanismo de defesa que opera como estrutura de sentido.
5) Culpa, supereu e redenção: dinâmica afetiva do delírio
O delírio de Ray não é “gratuito”: ele compensa um núcleo de culpa que, de outro modo, despedaçaria o eu. A psicanálise chama de supereu essa instância moral cruel que acusa e exige punição. Quando o sujeito não suporta o que fez (ou o que testemunhou), pode produzir uma narrativa onde passa de culpado a salvador. É a fantasia de redenção.
No filme, o herói que “salva” a filha é a contraface do pai que falhou. O supereu não desaparece: transforma-se em missão. O resultado é paradoxal: o delírio anestesia a culpa, mas firma a condenação do sujeito a viver num mundo em guerra — contra o hospital, contra o sistema, contra todos. A aparência de alívio vem com um preço: viver em estado de sítio.
6) O hospital como alegoria do inconsciente
O espaço hospitalar cumpre cinco funções simbólicas decisivas:
Labirinto: metáfora da repetição. Os corredores são “o mesmo” reencenado — a pulsão retorna ao ponto de partida.
Burocracia opaca: o discurso do Outro que não responde — fichas, telas, protocolos funcionam como significantes vazios.
Sala subterrânea / área restrita: o recalcado (ou, na psicose, o forcluído) – aquilo que só se acessa por meio de violações e atos.
As “provas” que nunca fecham: a lógica delirante transforma qualquer não-evidência em evidência da conspiração.
Equipe “antagônica”: projeção do Outro perseguidor; o hospital encarna a Lei sem garantias.
A direção de arte intensifica a sensação de desconexão: luz fria, superfícies assépticas, sinalização que pouco ajuda. O sujeito não se orienta: sem Nome-do-Pai, não há bússola simbólica.
7) Verdade objetiva vs. realidade psíquica
A distinção é crucial. Verdade objetiva: o que “de fato” aconteceu. Realidade psíquica: o que o desejo e o gozo tornam vivível. Para a clínica, interessa saber como o sujeito sustenta a realidade que o sustenta. Em Fratura, o que vemos é a alucinação narrativa do protagonista: a diegese se dobra à realidade psíquica.
A psicanálise não “desmente” simplesmente a versão delirante — interroga sua função. Que sustento ela fornece? Que prazer (gozo) ela organiza? Que culpa ela afasta? O filme nos ensina a escutar a lógica do delírio antes de pretender corrigi-lo. Na vida clínica, desmontar a fantasia de uma vez pode ser desastroso; é preferível interpretar as bordas, favorecer pequenas retificações subjetivas e encontrar suplências menos mortíferas.
8) Temporalidade: quando o tempo se parte
O título Fratura vale também para o tempo. O passado recente (o acidente), o presente (a busca) e o futuro (o resgate) não se articulam; vivem-se como camadas. A psicose frequentemente quebra a temporalidade: o sujeito não consegue encadear antes-agora-depois. Em Ray, o tempo é projetado para frente como uma missão (salvar), ao preço de apagar o que o antecede (perder).
Esse curvar do tempo tem sentido clínico: onde a história fere, a narrativa falha. Se há um ponto inassimilável, a experiência temporal circula nesse “buraco”, repetindo e deslocando. O filme encena essa lógica ao nos fazer voltar a espaços e cenas com variações — como num sonho que insiste.
9) O corpo em cena: sensação, ferida, gozo
A psicose é também clínica do corpo. Vozes, sensações cenestésicas, dores sem causa — são modos de intrusão do real no organismo. Em Fratura, o corpo ferido da filha e a mão tremendo de Ray cumprem duas funções: (a) gatilho do colapso e (b) campo de inscrição de um gozo que excede a palavra. A ferida literal abre espaço para a ferida simbólica: o pai que não consegue articular o que se passou, “traduz” em ato (invadir, acusar, raptar).
Quando a simbolização falha, o corpo fala — e, às vezes, age. O tour de force do protagonista pelo hospital é uma coreografia do real, expressão motora do que não pôde virar fala.
10) O lugar do pai: queda, missão e delírio de salvação
Freud mostrou como a função paterna não se reduz ao pai biológico: é uma função simbólica. Em Fratura, o “pai” cai — não sustenta, não garante. O delírio responde com um hiper-pai: Ray torna-se o herói absoluto, o único capaz de salvar. A “missão” é como o sujeito cola novamente a imagem de “bom pai” sobre o buraco da falha real.
Lacan diria: quando falta o Nome-do-Pai, inventam-se nomes. O “salvador” é um desses nomes. Ele dá consistência imaginária onde falta amarração simbólica. Por isso, a convicção delirante é inabalável: sem ela, o eu rui.
11) Ética do espectador: suportar (ou não) o intolerável
Assistir Fratura é uma experiência ética: somos conduzidos a acreditar em Ray, depois duvidar, depois acreditar de novo. O filme instala a transferência — o espectador toma o protagonista como sujeito suposto verdadeiro. Quando a verdade emerge, a experiência é de perda: perdemos o sentido que tínhamos. Isso nos devolve uma lição clínica: a verdade, na psicose, não pode simplesmente ser “dita”; ela precisa ser sustentada por um trabalho de costura.
A ética aqui não é a de “desmascarar”, mas a de compreender o preço psíquico de cada versão de realidade. A versão verdadeira destrói; a versão delirante mantém vivo. O que a clínica pode oferecer é outra via de sustentação, menos custosa do que viver em guerra contra o mundo.
12) Psicose ordinária e desencadeamento: a clínica de hoje
Os pós-lacanianos, como Jacques-Alain Miller, descrevem formas ordinárias de psicose: sujeitos que funcionam socialmente, sem delírio manifesto, até que um evento (um nascimento, uma perda, uma humilhação) desencadeie o colapso. Fratura ilustra com precisão esse ponto de fratura: o sujeito aparentemente “normal” encontra um acontecimento inassimilável e, para não desabar, migra para a versão delirante.
Isso importa para nossa época: vivemos sob pressões de desempenho, vínculos frágeis, redes que exibem “vidas perfeitas”. A ordinariedade do funcionamento pode esconder costuras precárias. O cinema, ao dar figura a esse colapso, nos ajuda a reconhecer sinais antes da catástrofe.
13) Por que não é “só um thriller”: a potência clínica do filme
Chamar Fratura de “thriller psicológico” é empobrecer sua potência. A obra funciona como estudo de caso ficcional — uma vinheta clínica onde vemos:
o nascimento do delírio;
sua função de estabilização;
a convicção que o alimenta;
as fissuras por onde o real retorna;
e o desfecho, em que a verdade se impõe tarde demais para evitar o dano.
Para a clínica, isso tem valor didático real. Alunos e profissionais podem, com o filme, apreender a lógica da psicose para além de listas de sintomas. O que está em jogo não é “ver coisas que não existem”, mas produzir um mundo onde seja possível existir.
14) Diferencial psicanalítico: escutar a função, não só o conteúdo
A leitura psicanalítica distingue-se da psiquiatria descritiva por perguntar a função. Não apenas “o que” o sujeito crê, mas “para quê”. Em Ray, a crença preserva um resto de dignidade, tapa o buraco da culpa, devolve agência (ele faz algo). Se a clínica se limita a desconfirmar a crença, retira-lhe o andaime sem construir outra sustentação. A ética analítica exige prudência: interpretar bordas do delírio, ampliar a margem de simbolização, oferecer suportes alternativos (laço, palavra, nomeações menos rígidas) até, quem sabe, permitir alguma retificação do sujeito diante de sua história.
15) Ecos do Caso Schreber: Deus, sistema e lei
No Caso Schreber, o sujeito crê ser chamado por Deus a regenerar o mundo. Em Fratura, não há Deus, mas há um Sistema onipotente (hospital, burocracia, “máquina de moer gente”). A homologia salta aos olhos: onde a Lei simbólica falta, o sujeito a reencontra como Lei persecutória. O “chamado” de Ray — salvar a filha — é uma variação secular do mandato divino. Em ambos, o delírio estabiliza um mundo que, sem isso, se desfaz.
16) O momento do colapso: quando a fábula não se sustenta
O filme conduz a um ponto em que a fissura se abre: detalhes acumulados, contradições, objetos “fora de lugar” fazem a narrativa cair. O espectador vive o choque como desilusão; o sujeito, como catástrofe. Aqui reside uma verdade clínica dura: para alguns sujeitos, a verdade mata (no sentido simbólico do termo). Por isso, na psicose, não há cura pela verdade, mas caminhos de amarração — certos sinthomas, diria Lacan, modos singulares de amarrar RSI (Real, Simbólico, Imaginário). Fratura termina sem esses arranjos, expondo o protagonista e a audiência à crueza do real.
17) Transferência e ponto de vista: o espectador como cúmplice
A construção do filme não é neutra: ela nos coloca no lugar de Ray. Vemos o que ele vê, acreditamos no que ele acredita. Esse procedimento faz do espectador um sujeito suposto saber invertido: acreditamos que sabemos o que se passa porque vemos pelos olhos dele. Quando a trama gira, cai também nossa ilusão de saber. Isso tem efeito didático: a psicose não é “o outro estranho”; qualquer um, em determinadas condições, pode precisar de uma fábula para continuar. A empatia que o filme produz é, em si, uma experiência ética: reconhecer o desamparo que nos habita.
18) O que Fratura ensina à clínica
O delírio tem função. Antes de corrigi-lo, é preciso compreendê-lo.
A culpa mascara-se de missão. Onde o supereu devasta, o sujeito inventa um “dever” absoluto.
A Lei pode aparecer como complô. Na psicose, o Outro é vivido como invasor.
A temporalidade se dobra. Sem costura simbólica, passado e presente não encaixam.
O corpo fala. Quando a palavra falha, o corpo atua e sente demais.
A verdade não basta. É preciso suplências (nomes, laços, obras, rituais) que amarrem o sujeito ao mundo.
19) Uma nota sobre classificação: por que importa “nomear bem”
Dizer que se trata de psicose paranoide, e não de esquizofrenia, não é preciosismo. Nomear corretamente orienta o manejo. Diante de um paranoide, confrontos frontais tendem a intensificar a vivência persecutória. Com o sujeito esquizofrênico, a tarefa é sustentar o laço e costurar linguagem. No caso de Ray, impor-lhe de fora a “verdade” (você está enganado) seria acrescentar mais perseguição ao seu mundo. A clínica exige delicadeza tática.
20) Conclusão: o último refúgio do eu
Fratura dá forma cinematográfica a uma das teses mais potentes da psicanálise: o delírio não é um erro, é um refúgio. Refúgio precário, por vezes devastador, mas ainda assim refúgio. Quando o real rompe a pele do sentido, a mente desenha uma imagem para não sangrar até a morte.
Ver o filme com olhos de psicanálise é despatologizar o espetáculo e restituir ao delírio sua dignidade trágica: ali há dor, mas também engenho, poesia, luta pela sobrevivência subjetiva. Nem por isso idealizamos a psicose; aprendemos, com ela, a humildade clínica: não há cura sem costura, não há verdade que dispense um mínimo de ficção.
Talvez este seja o ponto mais comovente de Fratura: mostrar que, por trás do “louco”, há um pai tentando não morrer por dentro. E que, se a realidade o destrói, ele inventa outra — não por capricho, mas por necessidade vital. A pergunta que nos resta é clínica e ética: que outras invenções — menos cruéis — podemos ajudar a tecer com ele?
Bibliografia recomendada para o artigo
Freud, Sigmund
Freud, S. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia (Dementia Paranoides) / O caso Schreber (1911). Tradução: Paulo César de Souza; in Obras Completas, Vol. 10, Companhia das Letras, São Paulo, 2010. Companhia das Letras+1
Freud, S. Luto e Melancolia (1917).
Freud, S. O Inconsciente (1915).
Lacan, Jacques
Lacan, J. O Seminário, Livro 3: As Psicoses (1955-56). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985 (edição brasileira). Instituto Psicanálise MG+1
Lacan, J. O Seminário, Livro 23: O Sinthoma (1975-76). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. Recima21
Lacan, J. Escritos (seleção de textos sobre Nome-do-Pai, forclusão, “De uma questão preliminar…”)
Pós-lacanianos / literatura contemporânea
Jacques-Alain Miller — As Psicoses Ordinárias
Jean-Claude Maleval — Lógica do Delírio
Antonio Quinet — Psicose e Laço Social
Colette Soler — O Inconsciente a Céu Aberto
Autor nacional
Ferreira, Deivede Eder — Dicionário Básico de Psicanálise: Sigmund Freud. (Edição e editora a verificar; disponível em Amazon Brasil)



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