Psicanálise da Dor Herdada: quando a mãe é o espelho da mãe
- Deivede Eder Ferreira

- 1 de nov.
- 8 min de leitura
Atualizado: 1 de nov.

Página do autor do artigo: www.amazon.com.br/stores/author/B0BZM6LHMH
A herança invisível
Há gestos que atravessam gerações como sombras silenciosas. Não se transmitem por palavras, nem por heranças materiais, mas por atos repetidos, por modos de olhar e tocar. Uma mãe que um dia foi ferida aprende, sem saber, a amar por meio da dor. Acredita estar oferecendo afeto quando repete o gesto que a destruiu. Assim, o amor se contamina: torna-se um remédio amargo que promete consolo, mas reabre feridas antigas.
A psicanálise ensina que o inconsciente não é apenas uma região interna, mas uma forma de memória que atravessa corpos, famílias e séculos. Aquilo que não foi simbolizado, o que não pôde ser dito, retorna em ato — disfarçado de cuidado, de brincadeira, de amor. É assim que a mãe, sem perceber, se torna o espelho da mãe: reflete o trauma que a constituiu e o entrega, agora, como se fosse afeto.
Aprofunde-se onde o pensamento encontra o inconsciente
Receba artigos exclusivos sobre filosofia e psicanálise, novidades sobre livros, cursos e eventos da ABRAFP diretamente no seu e-mail.
I – A mãe que aprendeu o amor na dor
Nenhuma criança nasce sabendo o que é o amor. Ela o aprende nas mãos que a tocam, nos olhos que a observam, nas palavras que a acolhem ou rejeitam. Mas quando o toque vem misturado à agressão — quando o carinho chega depois da punição — o corpo infantil grava uma associação perversa: o amor dói. E essa lição, uma vez inscrita, tende a se repetir por toda a vida.
Freud chamou de compulsão à repetição esse enigma humano que faz o sujeito buscar, inconscientemente, o sofrimento conhecido. O que foi vivido como trauma retorna como roteiro afetivo. A criança que apanhava e depois recebia o perdão aprende a desejar o ciclo inteiro — o castigo e o consolo. Quando adulta, repetirá o mesmo movimento: provocará o outro, o machucará ou se deixará machucar, apenas para reviver a cena primária em que dor e amor se confundiam.
Mas há algo mais sutil, mais trágico ainda: quando essa mulher se torna mãe, o gesto retorna não como lembrança, mas como prática. Ela repete o que recebeu — não por crueldade, mas porque é o único modo de amar que conhece. A dor se transforma em pedagogia afetiva. O trauma, em legado.
II – O prazer que repete o castigo
Em Além do Princípio do Prazer (1920), Freud percebe algo perturbador: o ser humano não busca apenas o prazer, mas também o retorno ao trauma. Há um “prazer no desprazer”, um gozo oculto que habita o sofrimento. A criança que sobrevive à violência cria, dentro de si, uma forma de prazer ligada à sobrevivência. O castigo se torna, paradoxalmente, a prova de que ela é importante o suficiente para ser notada.
Mais tarde, esse prazer envenenado reaparece. A mulher que apanhava e depois recebia um abraço pode, sem saber, criar situações de conflito para reviver o mesmo padrão: machucar o outro para poder curá-lo, provocar o choro para poder consolar, causar o perigo para depois oferecer proteção.
O que está em jogo aqui é o que Lacan chamaria de gozo — aquilo que ultrapassa o prazer e se mistura à dor. O gozo é o prazer que o sujeito sente apesar do sofrimento, e às vezes por causa dele. É o que faz alguém reviver cenas que o destroem, como se cada ferida fosse uma lembrança de existência.
Assim se constrói o ciclo: dor, culpa, consolo, prazer — e tudo recomeça. No inconsciente, a lógica é circular, não linear. Por isso, quando se tenta “corrigir” o passado, o sujeito acaba apenas encenando-o de novo. A cura não está em negar a dor, mas em entendê-la como linguagem.
III – Quando o amor se torna pedagogia da dor
Há mães que educam sem perceber que estão reproduzindo o gesto da própria infância. Ao incentivarem o filho a brincar até se machucar para depois acolhê-lo, elas estão reeditando o roteiro emocional que aprenderam: o amor vem depois da dor. Não é um gesto de maldade, mas de ignorância psíquica — a repetição automática de um código aprendido com sangue e lágrima.
Na psicanálise, chamamos isso de transmissão psíquica intergeracional. Não se trata de genética, mas de uma herança de formas de sentir. A filha que um dia chorou de medo e recebeu um abraço tardio aprende, sem saber, que o afeto precisa do sofrimento para fazer sentido. E repete o gesto — agora com seu próprio filho. A mãe da mãe renasce na filha, como reflexo que o tempo não apagou.
Quando uma mãe fere e consola, ela está repetindo a pedagogia da dor. Ensina, sem palavras, que o amor é conquista, não acolhimento. Que o afeto precisa ser merecido por meio do sofrimento. E assim, o corpo da criança é moldado para desejar a dor como condição de pertencimento.
Há, nessa estrutura, uma espécie de misticismo inconsciente: o sofrimento como rito de passagem para o amor. O sujeito se torna devoto da própria dor, acreditando que o amor só tem valor quando vem depois da ferida. E é por isso que tantas relações adultas oscilam entre o prazer e o castigo — porque o corpo ainda busca o gesto da mãe.
IV – O espelho da mãe
Ser mãe é, antes de tudo, reencontrar a própria infância. Cada gesto de cuidado convoca lembranças esquecidas: a maneira como fomos ninados, o tom de voz que nos acalmava ou assustava, o olhar que nos media o valor. A maternidade faz o inconsciente despertar. Por isso, tantas mulheres sentem-se invadidas por emoções que não compreendem. Não é o presente que as domina, mas o passado que volta a falar.
Quando uma mãe age de forma cruel e depois carinhosa, está repetindo a oscilação emocional da própria infância. Não percebe que o rosto do filho se tornou o espelho em que reencontra sua dor antiga. O amor que oferece é o mesmo que recebeu — ferido, contraditório, intenso. Ela não é má: é prisioneira de uma história não elaborada.
O espelho da mãe é o espelho da repetição. A filha que foi machucada e consolada reproduz o mesmo ciclo, acreditando estar sendo diferente, mais livre, mais moderna. Mas a modernidade emocional não rompe o inconsciente. A repetição é sutil: muda o cenário, muda o discurso, mas o gesto permanece.
É preciso olhar para o olhar. Ver o modo como se ama, não apenas o motivo. A análise começa quando o sujeito se pergunta: “De onde vem esse modo de amar?” E essa pergunta, simples e devastadora, abre o espelho — nele, aparece a mãe da mãe.
V – A dor herdada como forma de identidade
A dor, quando não é elaborada, torna-se identidade. A criança ferida cresce acreditando que sua sensibilidade, sua força e até sua inteligência vieram do sofrimento. Passa a defender o trauma como parte essencial de quem é. Mas esse apego à dor é o que mantém o ciclo vivo. Porque se o sofrimento é o que me fez ser quem sou, como abrir mão dele sem sentir que desapareço?
Essa armadilha subjetiva é uma das mais difíceis de romper. O sujeito ama o próprio trauma. Ama o gesto que o destruiu porque nele encontra sentido. É o mesmo que dizer: “Não posso odiar minha mãe, então amarei o que ela fez comigo.” O amor pela mãe se transforma em amor pela dor.
E assim, o inconsciente costura a repetição com fios de lealdade. A filha reproduz a mãe não por fraqueza, mas por fidelidade inconsciente. É a maneira que encontra de permanecer ligada a ela. Toda repetição é uma tentativa de reconciliação impossível — um modo de dizer: “Veja, mamãe, agora eu entendo você.”
Mas o que se repete nunca se resolve. A única saída é a travessia simbólica — reconhecer que a mãe também foi vítima, que também repetiu, que também amou de forma torta porque foi amada assim. O ódio, nesse ponto, se dissolve na compreensão. Não há perdão piedoso, mas lucidez: compreender é libertar-se do reflexo.
VI – O espelho quebrado: o distanciamento que liberta
A ruptura não ocorre dentro da cena. Enquanto o sujeito ainda reage, ainda quer corrigir, ainda busca amor nas mesmas coordenadas, continua preso ao reflexo. Romper o ciclo exige distanciamento — sair da imagem, olhar de fora, suportar o vazio que o amor misturado à dor deixará.
O espelho quebrado não é o fim do vínculo, é o começo da consciência. É quando o sujeito entende que amar não é reviver o trauma, mas escolher. E escolher só é possível quando o olhar se descola do reflexo. O afastamento é doloroso, porque rompe o laço inconsciente que sustentava o “nós” entre mãe e filha. Mas é também a única forma de nascer de novo.
Na clínica, esse processo é longo e exige coragem. A análise introduz o tempo, desacelera o automatismo, transforma o reflexo em palavra. Aquilo que antes era ato passa a ser dito, e o que é dito perde parte do seu poder de repetição. O inconsciente é insistente, mas não é imortal: o que é nomeado começa a se dissolver.
Quando o sujeito fala, o espelho trinca. Quando escuta o que diz, ele se quebra. E, nos estilhaços, aparece algo novo — um rosto próprio, não mais herdado. O amor deixa de ser reprodução da ferida e se torna escolha ética. A mãe continua existindo dentro, mas agora como memória, não como comando.
VII – O olhar que se reconhece e se liberta
O distanciamento não é indiferença; é o espaço onde o sujeito pode, enfim, se ver sem se confundir com a mãe. O reflexo se rompe, mas não se perde o amor. Ama-se de outra maneira: sem o espelho, sem o castigo, sem o roteiro. Ama-se com consciência do limite.
Freud dizia que a análise é um trabalho de luto. E, de fato, romper o ciclo é fazer o luto da mãe ideal, do amor que se esperava e nunca veio de forma pura. É aceitar que o amor recebido foi imperfeito, e ainda assim foi o que existiu. A cura nasce do reconhecimento da falta. É na ausência de perfeição que o sujeito se reencontra como autor da própria história.
Nesse ponto, a dor deixa de ser herança e se transforma em sabedoria. A mãe deixa de ser espelho e passa a ser origem. O amor, antes compulsão, torna-se gesto consciente. O sujeito aprende a cuidar sem ferir, a acolher sem dominar, a amar sem castigar.
O espelho quebrado reflete um novo olhar — não mais o reflexo da mãe, mas o olhar de quem compreendeu. A libertação não é o fim da dor, mas o começo da lucidez. Ver o que se repete é o primeiro passo para escolher o que se quer perpetuar.
VIII – Conclusão: o amor que se purifica ao se reconhecer
No fim, toda análise é uma história de amor — o amor que o sujeito tenta recuperar desde a infância. Mas para que ele se torne livre, precisa passar pela dor de se ver repetindo aquilo que um dia o feriu. É nesse espelho quebrado que o inconsciente se revela: nas rachaduras onde o reflexo não se completa.
A psicanálise da dor herdada nos mostra que o amor humano é um campo de transmissão, mas também de criação. A herança não é sentença. Romper o ciclo não é negar a mãe, mas reconhecê-la em nós e, ainda assim, seguir outro caminho.
Há mães que machucam para poder amar. Há filhos que aceitam a dor para se sentirem amados. E há aqueles — poucos, mas possíveis — que decidem olhar o espelho, ver a ferida e, mesmo tremendo, dizer: “Chega. Eu não preciso mais amar assim.”
Esse é o ponto de mutação psíquica, o nascimento de uma nova ética do amor. O sujeito que reconhece o ciclo, que compreende o prazer no castigo e o gozo no sofrimento, torna-se capaz de amar sem repetir. A análise o conduz à travessia simbólica: da herança inconsciente ao gesto consciente, da mãe como espelho à mãe como memória, do amor ferido ao amor livre.
O ciclo não desaparece — ele continua a rondar, como uma sombra antiga. Mas agora o sujeito sabe quem olha para quem. O reflexo perdeu o poder de comandar. E é nesse instante, silencioso e profundo, que o amor deixa de ser destino e se torna escolha.




Comentários