Entre a Racionalização e a Sublimação: Uma Leitura Psicanalítica do Desapego ao Dinheiro
- Deivede Eder Ferreira

- 30 de out.
- 5 min de leitura
Atualizado: 1 de nov.

1. Introdução – O discurso do moralista
Há sujeitos que se orgulham em dizer: “Eu não penso em dinheiro.” A frase, aparentemente nobre, guarda em si uma ambiguidade psicanalítica. Ela pode nascer tanto de uma ética genuína quanto de um mecanismo de defesa sofisticado. De um lado, há o homem que sublima — que transforma a energia pulsional em criação, pensamento, arte, doação. De outro, há o sujeito que racionaliza — que justifica sua impotência de desejar ou de agir, travestindo o recalcamento em virtude moral.
Freud nos ensinou que o sintoma é sempre uma solução comprometida entre o desejo e a censura. Assim, também o desapego do dinheiro pode ser um sintoma: um modo de manter o desejo afastado do campo social, justificando-se pela pureza de valores. Mas nem todo desapego é fuga — há o desapego como elevação simbólica, aquele que emerge do processo de sublimação, quando a libido se desloca para o campo da cultura e da criação.
O desafio psicanalítico é distinguir essas duas formas de renúncia — a que esconde o recalque e a que revela a transfiguração do desejo.
2. O dinheiro como significante simbólico
Na psicanálise, o dinheiro nunca é apenas dinheiro. Ele é significante do valor simbólico — representa o reconhecimento, a troca, o lugar do sujeito no laço social. Em O Mal-Estar na Civilização, Freud mostra que a renúncia pulsional é necessária à vida coletiva; o sujeito deve abrir mão de uma parte de seu gozo em nome da cultura. Mas o capitalismo inverteu esse pacto: transformou o desejo em mercadoria, e o valor simbólico em valor de mercado.
Nesse contexto, o dinheiro tornou-se o equivalente universal do desejo. Ele substitui o amor, a palavra, o reconhecimento. Por isso, para muitos, o dinheiro ocupa o lugar do falo simbólico — não por ser objeto de desejo, mas por representar o poder de ser desejado.
Quando alguém diz “não me importo com o dinheiro”, é legítimo perguntar: o que se recusa ali é o dinheiro em si, ou a própria inscrição do sujeito no campo do desejo social?
3. Racionalização: a defesa moral contra a impotência
A racionalização é um dos mecanismos de defesa mais sofisticados do eu. Ela permite ao sujeito criar justificativas lógicas e morais para encobrir um conflito inconsciente. Assim, o moralista pode não estar acima do desejo, mas preso à sua própria castração.
Ele teme o dinheiro — não porque o transcendeste, mas porque ele o confronta com o limite da própria potência. Ganhar, negociar, valorizar-se exige reconhecer o próprio desejo e lidar com a falta. Para o moralista, isso é insuportável. Sua pureza se torna uma máscara: um modo de dizer “eu não quero”, quando, na verdade, é “eu não posso”.
Freud via esse tipo de discurso como forma de formação reativa: o sujeito exibe um comportamento moral oposto ao impulso recalcado. Quanto mais insiste em ser “desapegado”, mais revela o conflito interno com o desejo de possuir, de ser reconhecido, de existir simbolicamente através do valor.
4. Sublimação: o dinheiro transmutado em sentido
Mas a psicanálise não reduz o homem a seus sintomas. Há aqueles que realmente sublimam. A sublimação é o processo pelo qual a energia pulsional é desviada de sua meta sexual imediata e investida em atividades socialmente valorizadas: o saber, a arte, a pesquisa, a espiritualidade, a solidariedade.
Nesse caso, o sujeito não recusa o desejo — ele o eleva. Ele não foge do dinheiro, mas o reinterpreta simbolicamente: entende que o valor não está no acúmulo, mas na produção de sentido.
Sublimar é transformar o impulso de possuir em impulso de criar. É deslocar o foco do ter para o ser — sem negar a realidade material, mas transcendendo-a. O verdadeiro sublimador não precisa proclamar seu desapego, porque seu gozo já encontrou um lugar no simbólico.
Lacan dizia que a sublimação “eleva o objeto à dignidade da Coisa”. Isso significa que o valor deixa de ser medido por equivalência econômica e passa a se inscrever no campo do desejo. A criação, o pensamento e o cuidado se tornam expressões do pulsional. O sujeito não foge da falta — ele a transforma em obra.
5. Capitalismo e o imperativo do gozo
Vivemos, porém, em uma era em que a sublimação foi quase substituída pela compulsão. O capitalismo não convida o sujeito a desejar — ele o obriga a gozar. O comando não é mais “renuncie para civilizar-se”, mas “goze para existir”.
Nesse cenário, tanto o moralista quanto o consumista se tornam faces de uma mesma moeda: ambos giram em torno da relação com o desejo, um pela recusa e o outro pelo excesso. Um se protege dizendo “não quero participar”, o outro se afoga dizendo “quero tudo agora”. Ambos perdem a dimensão simbólica da falta — o espaço do desejo que, para a psicanálise, é o que verdadeiramente humaniza.
O dinheiro, nesse contexto, deixa de ser meio e torna-se medida de existência. Por isso, quem recusa o jogo do capital precisa distinguir se está resistindo ao gozo imposto ou fugindo do próprio desejo. Essa distinção é ética, não econômica.
6. Ética e desejo: a via do meio
A psicanálise propõe uma ética singular: não a da moral, mas a do desejo. O sujeito ético é aquele que não trai seu desejo — nem o recalca, nem o transforma em fetiche.
Ser ético, nesse sentido, é poder desejar sem se submeter ao imperativo do gozo. É poder trabalhar, ganhar, criar, investir, sem fazer do dinheiro um deus ou um demônio.
A ética do desejo não nega o capital, mas o reinscreve no simbólico: o dinheiro passa a ser linguagem — instrumento de circulação do desejo — e não identidade do sujeito.
Assim, há o lugar legítimo para o artista, o filósofo, o psicanalista, o pensador que não coloca o lucro como medida do valor, mas que não transforma a pobreza em ideal neurótico.
7. Dinheiro, desejo e o Nome-do-Pai
Lacan nos lembra que o dinheiro é também um significante paterno. Ele estrutura a lei da troca, a castração simbólica, o reconhecimento de que nada se tem sem dar algo em troca. O sujeito que se recusa a lidar com o dinheiro, muitas vezes, está recusando a lei simbólica do pai — quer permanecer fora do jogo da linguagem, fora da dívida que funda o laço social.
Por outro lado, aquele que faz do dinheiro seu deus também se perde: transforma o significante em fetiche, reduz o simbólico ao imaginário. Entre a recusa e o fetiche, o caminho ético é o da sublimação — reconhecer o valor sem se reduzir a ele.
8. O trabalho como campo de sublimação
O trabalho é uma das formas mais elevadas de sublimação. Quando o sujeito encontra uma atividade que lhe permite investir libido de forma criativa, ele transforma o impulso em cultura. Ser psicanalista, professor, artista, pesquisador, é participar dessa dimensão: trabalhar não apenas por ganho, mas por sentido.
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9. Conclusão – O humano entre o ter e o ser
A psicanálise nos ensina que o sujeito não é o que tem, mas o que deseja. Entretanto, desejar implica também reconhecer o mundo material como campo de mediação simbólica. Negar o dinheiro completamente é negar parte da realidade do desejo — é como negar o espelho em que o sujeito se vê refletido.
Há, portanto, dois modos de desapego: o neurótico e o sublimado. O primeiro recusa o dinheiro para fugir da castração. O segundo o transcende porque já a integrou.
Entre o moralista e o capitalista, a psicanálise propõe o caminho do sujeito ético — aquele que pode desejar sem se vender, ganhar sem se culpar, e criar sem se perder.
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