O TEMPO QUE SEGURA A INFÂNCIA
- Deivede Eder Ferreira

- 16 de nov.
- 7 min de leitura
UM ENSAIO PSICANALÍTICO SOBRE ESTABILIDADE, ROTINA E CUIDADO
Este artigo é assinado por Deivede Eder Ferreira, autor disponível na Amazon em https://www.amazon.com.br/stores/author/B0BZM6LHMH
I – Introdução: O Tempo Como A Primeira Casa da Criança
O tempo, para a criança, não é uma categoria abstrata. É um abrigo. Uma parede invisível que a protege do caos, que a acolhe no intervalo entre uma presença e outra, que lhe ensina que o mundo continua mesmo quando o adulto não está fisicamente ali. O tempo da infância é tecido de antecipações, ritmos, pequenas certezas, repetições que se tornam base.
Se os adultos lidam com horários, agendas, compromissos, a criança lida com algo muito mais delicado: o ritmo emocional do cuidado. A previsibilidade não é, para ela, uma convenção: é uma necessidade biológica, psíquica e simbólica. A estabilidade não é um luxo, mas o próprio solo sobre o qual o eu infantil se organiza.
Na infância, cada contato, cada ausência, cada espera e cada retorno inscreve significados no corpo e no psiquismo. É por isso que a presença instável machuca, enquanto a ausência coerente, explicada e prevista pode – paradoxalmente – sustentar.
Este ensaio examina a função psíquica da rotina e da previsibilidade na infância, demonstrando por que elas constituem uma arquitetura invisível capaz de proteger a criança de angústias desnecessárias e organizar suas experiências afetivas. A partir da psicanálise, da teoria do apego e da psicologia do desenvolvimento, o texto aborda o impacto profundo das presenças intermitentes e da ausência de rotina nas relações parentais, especialmente quando há conflitos, separações ou disputas que afetam a organização familiar.
E, de modo crítico e fundamentado, dedica uma seção à análise de um equívoco recorrente em práticas assistenciais: a crença de que qualquer presença é mais importante que a previsibilidade. A psicanálise, ao contrário, mostra que uma ausência bem explicada, coerente e simbolizável é menos danosa do que uma presença caótica, instável e invasiva.
O tempo, na infância, é mais importante do que a presença. Porque o tempo é o que dá sentido à presença. E é sobre essa verdade silenciosa que este texto se constrói.
II – O Tempo Como Contorno do Self: A Previsibilidade Como Solo Psíquico
Winnicott (1956) descrevede que o self infantil depende da “experiência de continuidade de ser”. Essa continuidade não nasce de grandes eventos, mas de repetições pequenas: o banho no mesmo horário, o colo disponível, a comida quente, o momento de dormir, o gesto previsível, a voz que retorna sempre pela mesma porta emocional.
A previsibilidade é o contorno do self. Sem esse contorno, o eu infantil se esgarça. A criança precisa de sinais claros para saber quando se entregar ao brincar, quando relaxar, quando esperar, quando parar. Ela não se apoia no relógio — ela se apoia no adulto.
Na teoria psicanalítica, o ambiente “suficientemente bom” não significa perfeito, mas regular. Regularidade é a forma mais básica e mais profunda de amor. Ela diz à criança: “Você pode confiar. O mundo não vai sumir de repente.”
A previsibilidade é o que permite que a ausência não seja vivida como colapso. Permite que a criança antecipe e simbolize, tornando o mundo compreensível.
III – O Impacto Psíquico da Imprevisibilidade: Ansiedade, Desorganização e Alerta Contínuo
Quando a rotina falha ou quando o adulto aparece e desaparece sem aviso, a criança não vive isso como descuido: ela vive como uma ameaça. Não uma ameaça física, mas uma ameaça simbólica — uma ameaça à sua coerência interna.
A falta de previsibilidade produz:
ansiedade antecipatória, pois a criança não sabe quando o amor virá;
hipervigilância, porque ela precisa monitorar o ambiente para captar sinais;
oscilação emocional, já que o mundo se torna imprevisível;
estado de alerta, comum em quadros de apego desorganizado;
desorganização do brincar, que perde espontaneidade;
regressões, como dificuldade para dormir, choro sem causa aparente, irritabilidade.
A psicanálise descreve essa condição como perda das bordas do eu. A criança sente-se solta, sem ancoragem. O tempo deixa de ser casa e vira labirinto.
Freud, em Além do Princípio do Prazer, já alertava que a capacidade de suportar a ausência depende da possibilidade de antecipá-la. Quando não há antecipação, a ausência se torna traumática, não porque é ausência, mas porque é enigma.
O enigma é mais pesado que o vazio.
IV – O Encontro Inesperado: Quando a Presença Invade
A presença parece, à primeira vista, algo sempre positivo. Mas não é. Nem toda presença é afeto. Nem toda aparição é cuidado.
A criança não lida bem com o inesperado. Mesmo quando o inesperado é, tecnicamente, “bom”.
Uma ligação inesperada não é apenas uma ligação: é um rompimento abrupto do estado psíquico em que a criança estava. Ela é arrancada do brincar, do foco, do relaxamento, da fantasia. Uma excitação súbita se instala — e excitação não é alegria. Na psicanálise, excitação é sempre uma forma de invasão.
O adulto que surge sem aviso crê estar oferecendo afeto, mas está, na verdade, produzindo:
ruptura do campo simbólico;
perda momentânea da sensação de continuidade;
desorganização emocional súbita;
ansiedade pela possibilidade de que isso ocorra a qualquer momento.
A criança perde a liberdade de se entregar ao brincar, pois passa a temer interrupções repentinas. Passa a viver em prontidão.
O inesperado constante não cria vínculo: cria vigilância.
V – O Encontro Que Não Ocorre: O Silêncio Sem Explicação
Quando o adulto não aparece e não avisa, a criança vive a ausência como falha pessoal. Ela não pensa: “o adulto está ocupado” ou “houve um imprevisto”. Sua leitura psíquica é literal:
“Ele não veio porque eu não fui suficiente.”
Esse é o berço da culpa primária, conceito amplamente explorado por Melanie Klein. O eu infantil, ainda frágil, assume para si a responsabilidade pela falha do outro. A ausência sem explicação não é ausência: é abandono simbólico, mesmo que temporário.
Bion nos ensina que aquilo que não é nomeado não pode ser metabolizado. Se a ausência não é anunciada, explicada e integrada simbolicamente, ela se transforma em angústia irrepresentável — aquela que a criança não consegue transformar em palavra, apenas em sintoma.
Por isso, a ausência explicada é mais saudável do que a ausência silenciosa. E ainda mais saudável do que a presença caótica.
VI – A Função Parental do Tempo: Responsabilidade do Adulto, Não da Criança
A criança não tem capacidade cognitiva para entender mudanças súbitas. Ela vive no concreto. No imediato. No literal.
Por isso, cabe ao adulto organizar o tempo do contato para não invadir, não desestabilizar e não gerar ansiedade desnecessária.
A previsibilidade inclui:
dias definidos;
horários aproximados;
avisos de impossibilidade;
repetição de padrões;
respeito ao ritmo emocional infantil.
A imprevisibilidade, por sua vez, coloca a criança em estado de alerta e fragmentação perceptiva. É por isso que a previsibilidade é uma responsabilidade parental, e não uma adaptação infantil.
VII – Quando a Prática Assistencial Se Engana: Por Que “Qualquer Presença” Não Basta
Por Que Uma Ausência Bem Explicada Pode Ser Mais Protetiva do Que Uma Presença Instável.
Há um equívoco recorrente em setores da assistência social, da psicologia institucional e até do Judiciário: a crença de que qualquer presença é melhor do que a ausência.
Essa premissa, tão repetida, é psicologicamente falsa.
1. O mito da presença a qualquer custo
Algumas práticas assistenciais partem da ideia de que o contato, por si só, é sempre benéfico. Que mesmo aparições esporádicas fortalecem vínculos. Que qualquer ligação é melhor do que ligação nenhuma.
A psicanálise demonstra o contrário.
A presença instável:
não gera vínculo,
não gera segurança,
não gera pertencimento,
não gera afeto consistente.
Ela gera, isso sim, ansiedade, excitação invasiva e confusão.
2. A ausência explicada como recurso de cuidado
Uma ausência explicada, coerente, integrada e antecipada é algo fundamentalmente diferente de abandono. Ela permite:
simbolização,
interpretação,
compreensão,
elaboração.
Ao saber antecipadamente que não haverá contato, a criança reorganiza internamente sua expectativa e transita emocionalmente de modo saudável.
É assim que ela aprende sobre limites, sobre tempo, sobre espera — e sobre o fato de que o outro não desaparece por rejeição, mas por impossibilidade.
3. O que a literatura diz
Winnicott é claro: descontinuidade é mais prejudicial do que ausência. Bion reforça: o que não é explicado vira angústia sem nome. Bowlby acrescenta: o apego seguro depende mais de previsibilidade do que de presença contínua.
Portanto, insistir que “qualquer presença é boa” é negar a ciência psicológica.
4. Uma crítica respeitosa, mas necessária
Alguns profissionais — bem intencionados, mas pouco atualizados — ainda interpretam previsibilidade como rigidez e ausência como negligência. Isso é um erro conceitual importante.
A previsibilidade é cuidado. A ausência explicada é cuidado.
O que não é cuidado é a presença que invade, que surpreende, que desorganiza, que surge sem ritmo, que falha sem aviso.
Políticas sociais precisam compreender isso com urgência.
VIII – A Função Mediadora do Adulto Estável: Sustentação Psíquica e Continência
Quando um dos adultos é instável, desorganizado ou imprevisível, cabe à figura cuidadora estável exercer dupla função:
proteger o psiquismo da criança,
e proteger o vínculo do colapso.
Essa função é profundamente descrita na obra de Bion: trata-se da função continente. O adulto estável dá formas às experiências brutas, traduz expectativas, organiza o tempo, antecipa emoções, nomeia ausências.
Ele se torna o eixo do mundo da criança — não por controle, mas por amor estruturante.
Essa mediação não afasta o outro adulto. Ao contrário: torna possível sua presença de modo saudável, ritmado e não invasivo.
IX – A Previsibilidade Como Linguagem de Amor
A rotina não é mera técnica parental. É uma linguagem emocional. É a forma como o adulto diz à criança:
“Você está segura. Eu te vejo. Eu te antecipo. Eu te explico. Eu não te deixo sozinha diante do inesperado.”
A estabilidade cria espaço para que a criança viva sua infância. Sem precisar adivinhar. Sem precisar vigiar. Sem precisar esperar indefinidamente.
O tempo estável liberta.
X – Conclusão: O Tempo Como Ato Ético
A previsibilidade é uma das maiores expressões éticas do cuidado com a infância. Não basta amar: é preciso amar com ritmo. Não basta aparecer: é preciso aparecer de modo simbolizável. Não basta falar: é preciso preparar o terreno emocional para ser escutado.
Na infância, o tempo não é cronológico — é simbólico.
E quando o tempo falha, tudo falha.
Mas quando o tempo sustenta, a criança aprende a viver, confiar e crescer com solidez.
O tempo que segura a infância é feito de repetição, de antecipação e de contornos. É feito de cuidado.
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