Autismo e Psicanálise: o sujeito diante do impossível do laço
- Deivede Eder Ferreira

- 7 de out.
- 6 min de leitura

O autismo sempre habitou o limiar entre o biológico e o simbólico, entre o corpo e a linguagem, entre o olhar que busca e o olhar que se recusa. Na história da psicopatologia, ele nasceu como conceito clínico, mas logo se tornou espelho ético: um convite ao pensamento sobre o que é, afinal, estar em relação com o outro.
A psicanálise, ao debruçar-se sobre esse campo, não o fez para competir com as ciências médicas, mas para oferecer uma escuta — aquela que se interessa não pelo que o sujeito diz, mas pelo modo como o silêncio se organiza.
Entre o silêncio e o impossível do laço, o sujeito autista nos convida a repensar o que é estar com o outro. Aprofunde essa reflexão no livro Autismo e Psicanálise: Uma Jornada de Compreensão e Esperança
O nascimento de uma escuta
Freud não chegou a formular uma teoria do autismo. O termo ainda não havia tomado o sentido atual em sua época. Mas em A Interpretação dos Sonhos e nas formulações sobre o narcisismo, há já a intuição de algo que escapa ao laço social — um fechamento da libido sobre o próprio Eu, um retorno do investimento pulsional que se desvia do mundo externo.
O autismo, nessa leitura retrospectiva, seria uma das formas mais radicais de recusa do Outro, de retraimento libidinal extremo — não como escolha, mas como impossibilidade estrutural.
Bleuler, em 1911, usou pela primeira vez o termo “autismo” para designar o afastamento da realidade observado na esquizofrenia. Décadas depois, Leo Kanner descreveu crianças “autísticas” com traços singulares de isolamento e insistência na mesmice — separando-as da esquizofrenia infantil e inaugurando uma nova categoria diagnóstica.
Bruno Bettelheim, por sua vez, nos anos 1960, interpretou esse isolamento como resultado da frieza materna — a infame “mãe geladeira”. Hoje, reconhecemos essa hipótese como equivocada. Mas ela deixa uma marca: o risco de moralizar o sofrimento psíquico, reduzindo o enigma do sujeito à culpa parental.
Lacan e o autismo como estrutura
Jacques Lacan reorganizou o debate. Ao afirmar que o sujeito se constitui na linguagem, ele desloca o foco do biológico para o simbólico:
“O autista não é alguém sem afeto, mas alguém para quem o Outro aparece como excesso insuportável.”
O autismo, nessa chave, não é uma doença, mas uma forma de defesa diante de um mundo saturado de significantes. A criança autista se protege do Outro antes mesmo de poder significá-lo. E é justamente essa proteção — esse muro simbólico — que o mundo tenta, de modo impaciente, derrubar.
O equívoco está em tentar ensinar o autista a ser como os outros, impondo-lhe uma pedagogia da normalidade. A psicanálise, ao contrário, convida a escutar o sentido contido nas repetições, nas estereotipias, nos rituais. Cada gesto, cada eco, cada rotina pode ser uma tentativa de construir um mundo habitável.
Curar ou compreender?
Há um equívoco ético em tentar “curar” o autismo. Curar de quê? Da diferença? Da forma singular de se defender do excesso do mundo?
A psicanálise não busca curar — ela busca compreender. Ela aposta que, mesmo onde o laço parece impossível, algo do simbólico ainda pode emergir: um olhar, um gesto, um ritmo. Na clínica, isso se traduz em presença sem invasão.
O analista aprende que a palavra nem sempre é o melhor instrumento; às vezes, o silêncio é o que permite o nascimento da linguagem. Cada repetição, cada som, cada ritual carrega um valor simbólico que precisa ser reconhecido, não eliminado.
O autismo e o Nome-do-Pai
A leitura lacaniana propõe que, no autismo, o significante Nome-do-Pai — operador da metáfora e da lei — não se inscreve plenamente. Sem essa inscrição, o sujeito não entra na dialética da falta e da substituição. O mundo, então, surge como puro Real, sem mediação simbólica.
Para suportar esse real, o sujeito cria defesas rituais: repetições, previsibilidade, fixações. Mas esses recursos, longe de serem meros sintomas, são criações simbólicas — modos de organizar o caos interno.
O papel do analista é acompanhar essas criações, sustentando-as como invenções subjetivas. Não se trata de interpretar de fora, mas de estar dentro do ritmo do sujeito, acompanhando-o sem impor linearidade.
A clínica como espaço do possível
O analista, diante do sujeito autista, deve suportar o não-saber. O silêncio, o gesto ou o olhar são formas de linguagem. A clínica se torna, assim, um campo de escuta ampliada, onde tudo pode ter valor simbólico — inclusive a ausência de palavra.
Frequentemente, o autista cria uma linguagem privada: linhas de brinquedos organizadas por cor, sons repetitivos, fixações em temas específicos. Essas formas de ordem são tentativas de estabilizar o Eu frente a um real que ameaça desintegrar.
Freud dizia que o sintoma é uma mensagem cifrada. No autismo, o código é mais complexo, mas o princípio é o mesmo:
“Mesmo o silêncio fala, quando há quem o escute.”
O tempo circular do autismo
O autismo desafia a noção freudiana de tempo psíquico. Enquanto o neurótico vive preso à culpa do passado, o autista parece habitar um presente contínuo. Cada dia repete o anterior — como se o idêntico garantisse a existência.
Introduzir a diferença, na clínica, é um gesto delicado. Uma pausa nova, uma variação mínima num jogo, uma pequena mudança em uma rotina — tudo isso pode ser vivido como ruptura, mas também como descoberta.
A cura, aqui, não é adaptação, mas possibilidade de variação simbólica. É o instante em que o sujeito, mesmo que minimamente, aceita que o mundo pode ser outro — e que essa diferença não é ameaça, mas horizonte.
Transferência e aposta ética
O autista desafia a noção clássica de transferência. O analista não ocupa, necessariamente, o lugar do Outro simbólico. Às vezes, é apenas uma presença neutra, um corpo que não exige reciprocidade.
Mas é justamente nesse não-exigir que se abre o espaço da confiança. Lacan diria que o analista encarna o “desejo do analista”: um desejo sem objeto, que apenas sustenta a aposta de que há sujeito ali.
Essa aposta é o gesto ético da psicanálise: apostar no sujeito mesmo quando a linguagem falha. Sustentar que há desejo mesmo onde há silêncio. E que o autismo não é ausência de laço, mas um laço de outra ordem.
Entre a ciência e o enigma
A neurociência revela as bases biológicas do Transtorno do Espectro Autista (TEA): diferenças genéticas, conectividade cerebral, funções executivas. A psicanálise não nega isso — apenas lembra que o sujeito é mais do que seu cérebro.
O sofrimento do autista não é ausência de sofrimento, mas um sofrimento sem palavra, sem representação. E é aí que a psicanálise entra: onde a ciência termina, a escuta começa.
O encontro entre neurologia e psicanálise não é uma disputa, mas um diálogo: a primeira descreve os mecanismos; a segunda escuta o sujeito que vive esses mecanismos.
O sujeito e o impossível do laço
O autismo obriga a psicanálise a olhar para seus próprios limites. Como escutar quem não fala? Como interpretar sem invadir? Como sustentar o desejo diante do silêncio?
Cada resposta é provisória, mas cada tentativa reafirma o essencial: o sujeito existe, mesmo quando não se mostra.
O autismo nos lembra que o humano não se define pela fala, mas pela possibilidade de ser escutado — ainda que em outro registro. Há humanidade no silêncio, há laço no olhar, há desejo na repetição.
O analista que suporta esse enigma toca o coração da psicanálise: o lugar onde o inconsciente se revela como presença viva, não como conceito.
A ética da diferença
Em um mundo que idolatra a performance e a normalidade, a psicanálise é um ato de resistência. Ela sustenta a ideia de que o valor do sujeito não depende de sua adaptação, mas de sua singularidade.
A ética do cuidado psicanalítico está em reconhecer: o autista não é alguém fora da linguagem, mas alguém que constrói outra linguagem. E escutar essa outra linguagem é o primeiro passo de qualquer inclusão verdadeira.
Conclusão
O autismo é um espelho que devolve à psicanálise sua própria pergunta:
“O que é um sujeito?”
Ele revela o limite da linguagem e, com isso, o núcleo da humanidade. Na escuta psicanalítica, o autista não é um enigma a ser decifrado, mas um sujeito que inventa formas inéditas de estar no mundo.
Escutar esse sujeito é, talvez, o gesto mais ético da nossa época. E é também o convite silencioso que o autismo faz à psicanálise: reaprender a escutar, mesmo quando não há palavras.
Leitura Recomendada
Para aprofundar o tema e compreender o encontro entre teoria e clínica, conheça o livro:
Autismo e Psicanálise: Uma Jornada de Compreensão e Esperança de Deivede Eder Ferreira — Uma obra que une teoria, sensibilidade e experiência clínica, revelando o autismo como território de singularidade e reencontro humano.
Sobre o Autor
Deivede Eder Ferreira é psicanalista, pós-graduado em Psicanálise e fundador da Associação Brasileira de Filosofia e Psicanálise (ABRAFP). Autor de diversas obras sobre a escuta e a subjetividade contemporânea, dedica-se à difusão da psicanálise como caminho de emancipação, ética e autoconhecimento.
Entre suas publicações, destacam-se:
Dicionário Básico de Psicanálise: Sigmund Freud
Dicionário Básico de Psicanálise: Jacques Lacan
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Bibliografia
FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
FREUD, Sigmund. Recordar, Repetir e Elaborar (1914). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, vol. XII. Imago, 1996.
FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer (1920). In: Edição Standard Brasileira, vol. XVIII. Imago, 1996.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 7: A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.
LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, J.-B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
RICOEUR, Paul. Freud: Uma Interpretação da Cultura. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
SILVEIRA, Beatriz de. O Autismo e a Clínica Psicanalítica do Real. São Paulo: Escuta, 2016. FERRAZ,
FERREIRA, Deivede Eder. Autismo e Psicanálise: Uma Jornada de Compreensão e Esperança. São Paulo: ABRAFP, 2024.


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